quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Se eu explicar, estraga. [Amém para vida].


Entrei no táxi a caminho do aeroporto e o motorista, segundo baianinho que eu cruzava no dia, não demorou 7 segundos para dizer: “Oxê, é de onde, morena!?”

-       - Uai, quem falô qui eu num sô daqui?

Gargalhamos.

Ele já tinha me desarmado no “morena”que me dá nó na garganta com a lembrança do moço que deixei na terra dos macarons. Eu quase pedi um abraço. Depois ele me disse que eu tinha jeito firme, voz firme e uma risada que o dizia que eu não era tão firme assim. Respondi:

-       - Depende! Talvez desta vez você tenha errado.

Rimos de novo, mas ele ainda duvidou.

Tenho estabelecido uma relação estranha diante de pessoas que eu nunca mais vou ver. Mas Sr. Edmundo-fofinho-vontadedemorder-queroumavô e eu em algumas dezenas de minutos nos contamos nossas histórias, falamos de ilusão e de esperança e de otimismo e de egoísmo e de respeito.

Mudei de lugar e me assentei exatamente atrás dele. Nos olhamos pelo retrovisor em momentos cruciais de nossa conversa solta.

Mas só que no meio do caminho, eu percebi que Sr. Edmundo estava dando uma volta enorme para chegar ao aeroporto, por um caminho bem diferente do que meu GPS me indicava. Sim, minha mania de colocar o GPS para ir de qualquer lugar para qualquer lugar. Eu fiquei imediatamente chateada, porque razões meio evidentes, mas decidi que só ia falar sobre aquilo depois que estivéssemos chegado ao aeroporto.

Afinal de contas eu ainda ia ter que ficar no carro mais um bom tempo com ele. Neste meio tempo ele começou a me indicar algumas coisas no caminho. Um monumento aqui, um parque ali, umas ruas fofas. Falou sobre a história da cidade e sobre sua ligação com estes lugares. Eu me distrai, curti uns cantos da cidade que eu não conhecia e continuei curtindo a voz mansa e arrastada dele.

Quando a gente parou no desembarque do aeroporto, eu fiquei ali 14 segundos, olhando aquele taxímetro e pensando no que fazer e antes que eu dissesse qualquer coisa ele me disse um valor em torno de 30 reais abaixo do que estava marcado. Perguntado, ele me respondeu como quem não diz qualquer coisa enorme, que tinha dado uma voltinha de cortesia para me mostrar melhor a cidade.

Eu desci do carro, não fui para fila do check-in. Assentei em uma das cadeiras de espera, sorri sozinha e curti esta sensação melhor do mundo que eu acho que definitivamente se eu explicar, estraga.


Amém para vida.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Para deixar o outro ir.


E foi no caos que encontrei a paz. E foi na contradição que encontrei a resposta. Não gasto minhas palavras. Elas sempre valeram mais para mim que roupas, dinheiros ou carros caros. Elas me pertenceram integralmente e entendo que elas são provavelmente as únicas capazes de se manterem fiéis a mim mesma até o final. Mas sempre fui boa em interpretação de texto, sempre soube achar os duplos sentidos, as entrelinhas. Das palavras, dos textos, das atitudes e das pessoas.

Já achei e já devo ter escrito que amar é permanecer. Que o amor é o exercício do ficar, do não desistir, do não ir embora. Que o amor pode tudo, pode escolher a forma e o gosto que amante e amado quiserem.

A única coisa que o amor não faz é amar sozinho. O amor só é se ele for de duas pessoas, duas almas, prontas para serem namorados, amigos, pais e filhos, marido e mulher. Sem um contraponto, um par, o outro lado da corda, não se fala de amor.

Todo amor que se ama sozinho é não-amor. Se tem assunto que eu não me atrevo a definir é o assunto de amar. Mas eu só sei que existe amor falsificado, amor fantasiado, amor que já perdeu a validade, amor que se vestiu de amor, mas era qualquer outra coisa.

Deixar alguém ir embora também é amor. Pode ser uma prova bem viva e real dele. Às vezes na ânsia de fazer o outro feliz perdemos a capacidade de ler a necessidade do outro. E às vezes tudo que o outro precisa é do espaço reconfortante da nossa ausência.

Quando for preciso, torne-se um nada para aquela pessoa que você ama. Desapareça, vire pó. Ouça o que eu outro tenha a dizer e vá, se ele não te pede para ficar.

Só quando eu entendi que de alguma maneira o fato de estar eu na vida de certo alguém o atrapalhava, eu percebi que este amor não pertencia mais a nós dois. Ele agora era só meu.


Hoje, transformando seu caos em sossego, transformando sua angústia em alívio, transformando sua confusão em tédio, transformando sua pergunta em uma resposta, transformando sua dúvida em uma solução e transformando sua existência em algo mais chato, eu passo o texto para o discurso direto apenas para dizer: Vá! Vá como quem não vai mais voltar. Vá como quem nunca se importou. Vá como quem nunca precisou de ficar. Vá, procurar aquilo que você não sabe mais onde está. E se alguma coisa nesta história ainda me pertencer e se eu puder te fazer um último pedido, vá, para nunca, nunca, esquecer que o motivo de eu te deixar ir agora é simplesmente porque eu realmente amo você.

E o amor, só o amor de verdade, deixa o outro ir, mesmo quando bom mesmo é se ele escolhesse ficar. 

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Assalto.


- Olá, Sr. Policial.
- Sra., houve uma invasão em seu apartamento.
- A porta foi arrombada?
- Não. Você deixou a porta aberta e ele entrou.
- Pediu licença?
- Talvez tenha dado uma espiada rápida, mas acreditamos que entrou sem pedir.
- Quando vocês chegaram onde ele estava?
- Ele não estava mais por aqui. Só tinha restado um pequeno caos.
- Então ele mexeu nas minhas coisas?
- Tirou tudo dos armários, das gavetas e espalhou por aí.
- Roubou alguma coisa?
- Não sabemos dizer. Não sente falta de nada?
- Sinto, sinto muita falta. Alguma outra coisa danificada?
- Tinha algo espatifado na sala. Parecia um coração, mas não tinha mais conserto.
- Alguma pista de porque ele teria vindo aqui?
- Acredita-se que há uma epidemia de amores vazios. A senhora tem alguma ideia de quem seja?
- Sim.
- Quer ajudar com o retrato falado?
- Ele tem os olhos loucos pelo mundo. Um sorriso alucinado. E transborda todo o tempo.
- Sra., isso talvez não nos ajude muito.
- Ele também tem um chinelo velho e uma camisa desbeiçada.
- Sra., isso continua não nos ajudando.
- É, nem a mim.
- Acho que vou te deixar a sós.

- Isso, me deixe só. Tchau.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Todo mundo quer casar!



Aconteceu nesta manhã. Ela se assentou ao meu lado, fez um sinal com a cabeça, e com os olhos me indicou a revista de noivas em suas mãos, onde a modelo estampava a capa com um penteado esdrúxulo e um vestido gênero bolo de festa ou princesa da Disney a depender dos olhos de quem olha.

Aí ela disse: Meu sonho casar assim.

Eu: O meu não.
Ela: Prefere o coque mais baixo?  O vestido mais rendado?
Eu: Eu não quero casar.
Ela: Todo mundo quer casar. 


(...)


Por algum tempo da minha vida eu evitei ou me constrangi com minhas próprias frases como: eu não tenho religião, eu não quero casar, eu não acredito em fidelidade masculina. Evitei, porque de alguma maneira, parece que as pessoas têm tão poucas certezas de suas convicções que ouvir uma opinião diferente incomoda, fere, angustia. E eu sentia culpa por isso, me responsabilizava por incomodar as pessoas. 


Ali, diante da afirmação tonta vinda da moça, fiquei tentando imaginar porque alguém que provavelmente não sabe nem o que quer, ou sabendo, provavelmente não sabe a razão pela qual quer, se sujeitava a passar a vergonha de fazer uma generalização tão boba para uma estranha. Cá entre nós, afirmação que diz muito mais sobre ela, sobre o contexto em que ela está inserida e sobre os problemas crônicos de algumas gerações, do que ela mesma pudesse imaginar.


Ela deu azar, - ou sorte -, desta estranha ser eu, que já me conferi há tempos concessão para repetir em voz alta todas as coisas em que eu conscientemente acredito; incômodas ao ouvinte ou não. E é difícil ser delicada respondendo a certas afirmações. E eu desisti de tentar dizer determinadas coisas de outro jeito, quando eu só conheço um.

Respondi assim, sem alterar o tom de voz, sem deixar meu coração disparar e sem sentir nada que não fosse tristeza por ela: Porque eu ia querer vestir branco se minha cor preferida é azul, fazer um coque esquisito se eu fico mais bonita de cabelo solto, fazer promessas que não sei se vou poder cumprir e deixar um estranho falar sobre o modelo sobre o qual eu deveria construir minha família, quando eu visualizo umas dezenas de diferentes opções para fazer isso de um jeito melhor. E só para que fique claro que não querer me submeter ao procedimento casamento, não tem absolutamente nada a ver com não querer uma família. Com a qual, aliás eu sonho, mas que só vou construir se for ao meu modo. 

Os olhos da loirinha aguada se encheram de água e eu quase senti culpa. Quase, mas não senti.  Se a culpa não é dela, está mais ainda longe de ser minha. Cada um sonhe com o que quiser, acredite no que quiser. Mas que faça isso com verdade. Eu aprendi com muito esforço mental a me perguntar a razão pela qual eu desejo cada coisa na minha vida. E aprendi com ainda mais esforço a ouvir a voz real do meu coração, a entender minhas necessidades e motivações.


Eu lamento mesmo é que nesta altura do campeonato ainda se tenha tanta dificuldade de afinar discursos de felicidade e liberdade com a prática, acorrentando não milhares de vidas, mas milhares de almas a ideias que não correspondem definitivamente aos fatos. 

Não é mais fácil e nem mais cômodo, mas já faz tempo que eu não negligencio mais meus sonhos, nem os terceirizo. Também não restrinjo minha atividade criativa na hora de desejar coisas que tenham muito mais sentido do que talvez se possa sequer imaginar. Não, nem todo mundo, nem todo mundo mesmo quer casar.

Vida sem prorrogação.

Isso mal pode ser chamado de uma despedida de verdade. Eles apenas repetiram pela última vez um ritual que já haviam feito centenas de vezes no tempo em que tiveram suas vidas divididas.

Ela se assentou na bancada da cozinha. Pegou seus anéis que colocava ali um segundo depois de entrar no apartamento. Balançou os pés com suas meinhas coloridas que ele gostava tanto, esperando que ele pegasse suas botas. Depois ele ofereceu água. Ela quis. Gelada. Como todas as outras vezes. Ela sempre se dizia que aquela água era a melhor que ela tinha bebido naquele país e ela achava mesmo que fosse.

90% desta história foi vivida naquele apartamento. Eles se conheceram ali mesmo. A primeira vez que se viram e agora a última. Ela se lembra de que no segundo em que o olhou nos olhos pela primeira vez teve certeza que ainda iria amar aquele cara. Ela não sabia que tipo de amor ia ser, nem quanto tempo ia durar. E nem se importava. Mas soube que ele ia ser uma das suas pessoas. Ela só não soube que ia ser tanto. Só não soube que ele ia passar por cima de tantas coisas para estar do seu lado, nem que ele fosse efetivamente pedi-la só para ele. Só não soube que eles iam inventar um modo particular de fazer esta coisa toda e ainda assim poderia funcionar.

Ela deixou para trás algumas coisas na porta do armário que mereceu. Ele que as tire de lá quando sentir que deve, quando isso tudo não os pertencer mais. Então pode ser hoje no fim da tarde ou amanhã pela manhã, pode até ser agora ou pode ser quando ele achar o último dos 28 bilhetinhos que ela deixou espalhados pela casa em cada parte disso que lhe pertenceu até aqui.

Eles montaram o quarto novo juntos e acho que isso vai fazer ele lembrar dela. Principalmente o enfeite que ele não queria na parede e a almofada que não combina com nada. E acho que ele vai ter alguma raiva dela por isso em algum momento. E acho que isso pode ser bom. Ela foi e prometeu facilitar sua partida. Prometeu não dizer nunca se ela ainda o amar depois de hoje e nunca o chamar se sentir saudades. Uma vez ele disse e pareceu verdade que se ela não o amasse de volta ia ser tudo mais fácil. Acho que seria mesmo.

Então, enquanto ele colocou as botinhas nela, ela o beijou no alto da cabeça. Ele sorriu para ela ajoelhado e brincou de tirar uma aliança do bolso como fazia todas as vezes. Ela fez uma careta, o chamou de idiota e gritou um "J’accepteeeee" desafinado. Tudo sempre igual. Mesmo que depois de uma certa ocasião esta brincadeira tenha ficado mais desconfortável do que engraçada. Nesta hora ela se apaixonou pelo sorriso dele 32 vezes, uma para cada milésimo de segundo que ele gastou até levantar e beijar aquele cantinho mágico entre o nariz e a bochecha dela (o preferido dele). Ela pulou do banquinho, pegou sua bolsa em cima da mesa.

Eles foram até o corredor, cada um falou um número antes de apertar o botão do elevador tentando adivinhar de que andar ele vinha. Ela acertou como sempre e se fosse possível dava para dizer que ele fazia de propósito para ver ela comemorar dançando e rir alto. Ele não é de rir nem de sorrir muito. Foi o primeiro alerta feito por sua mãe quando elas se conheceram, como se fosse possível alguém não perceber isso. Mas o sorriso dele sempre foi fácil para ela, sempre. Não chamaria de barulhentas gargalhadas, mas era um sorriso largo, meio mole, branquinho e verdadeiro, muito verdadeiro.

Ai o elevador chegou, ela deitou no peito dele três segundos e o beijou no espacinho entre o peito e o pescoço (o preferido dela!). Ele estava encostado no vão da porta e não se moveu. Ela sorriu, entrou no elevador e a porta fechou. Foi tudo igual, sempre. Com a única e ensurdecedora diferença de que era esta a última e eles sabiam. Talvez eles até se vejam de novo, talvez se cruzem por acaso ou não. Mas esta história, como foi vivida até ali, deixou de os pertencer no segundo em que a porta do elevador fechou entre eles.

Começa aqui uma página nova de suas histórias. Mas não é mais uma história deles. É a dele. E é a dela. Quando a porta do elevador fechou entre eles, as pernas dela bambearam. Ela tinha se prometido que não ia chorar.Ele desviou o olhar do dela um segundo antes e pareceu medo. Ela ficou com medo e também abaixou o dela. Ela não sabe se ele teve tempo de remontar o olhar. Ela não teve. A última coisa que viu foram os pés dele.

Ela queria que ele soubesse que quando chegou na rua tudo rodou. Ela achou que ia vomitar. Ela se assentou na beira do passeio e chorou. E quis voltar e dizer que queria ficar mais um pouco. Mas foi embora. Eles procuraram tantas e tantas manhãs uma música para chamar de deles e neste momento ela só agradeceu por não tê-la baixado no seu celular. Ainda que ela tenha desconfiado que qualquer nota musical que tocou desde que ela colocou os pés nesta cidade vai lembrar os dois. E ainda que ela soubesse que de toda forma quando ela estivesse longe ela ia se lembrar de como ele a beijava, do jeitinho que o Ed cantou.

Ela viveu sim alguns outros amores e paixões nesta cidade que não carrega o título de cidade mais romântica por acaso. Mas faltou ele ter absoluta certeza que ele foi o amor mais magicamente estranho que ela já teve. E ela queria pedir desculpas pelas vezes que o magoou e sabe que fez, por ter dito não para única coisa que ele pediu e por não ser o tipo de pessoa que deixa o amor furar fila de outros tantos planos para a vida. Ela disse tantas vezes: o amor não é confiável, ele vira pó, ele sempre vira pó. Ela queria que ele acreditasse nela. Que isso também ia acontecer com eles. E ela também queria acreditar.

E ela queria que ele soubesse que este amor teve o tamanho da Torre Eiffel. E queria que ele a tivesse visto chorar para ter certeza, porque ele dizia que não era normal que ela não chorasse nunca, exceto naqueles episódios de Grey’s Anatomy. Na última vez que ele viajou, pouco mais de um mês atrás, quando foi pegar a correspondência e molhar as plantas, ela se assentou ali no chão da sala e passaram mais coisas na sua cabeça do que se poderia imaginar. Ela ficou ali umas meia hora ou mais, não tem certeza. E a única coisa que consegue lembrar agora é do cheiro daquela casa. Não é o dela, nem o dele, mas vai ser o cheiro que vai sempre a fazer reviver as centenas de momentos bons ou não que passaram no apartamento que era dele e ele sempre chamou de “nosso”, talvez como um jeito de a convencer a ficar mais um pouco.

Ela queria que ele soubesse isso tudo, mas ele não vai saber. Ela transborda quando não cabe nela, mas vai fazer isso longe dos olhos dele. Ela achou que este pode ser o jeito mais fácil. Com o sabor menos amargo de uma partida silenciosa, que não deixa portas abertas, espaço para interpretações ou esperas intermináveis por algo que não está destinado a acontecer. A única coisa que eles precisavam saber é que ela estava indo e bastou.


Certamente uma das grandes lembranças que ela leva desta vida que fica para trás, ele valeu o registro. Ela o amou de verdade até às 12h37 daquela sexta-feira, 25 de setembro de 2015. Tudo no tempo regulamentar, sem direito à prorrogação.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Uma joaninha e um pouco mais.


Minhas redes sociais normalmente mostram uma parcela muito estreita da minha vida. É só um pouquinho do que transborda, do que não dá para segurar, uns indícios da minha esquisitice e do avesso em que vivo. A maior parte de mim, - e não vou ousar dizer que seja a melhor-, prefiro guardar. Minha vida privada é mais privada que às vezes as pessoas imaginam.

Mas a verdade é que apesar do tema de hoje não se enquadrar no tipo de coisa que eu compartilho aqui, a ideia deste post surgiu um bom tempo atrás. Minha opção de fazer um mestrado fora do país em uma língua que eu não conhecia ainda teve como consequências um processo complexo, muitas vezes cheio de dificuldades. Em várias e várias ocasiões me perguntei porque é que eu tinha inventado esta ideia maluca? A experiência é e foi impagável, mas tinha um risco alto e eu sabia.

Com isso vem as experiências dos outros se somando à sua própria. Conheci várias pessoas que não conseguiram ter seus mestrados, nesta mesma cidade, depois de terem se arriscado na mesma experiência que eu. E isso foi lembrado por algumas vezes quando eu assentada na frente do computador tentava fazer sair um artigo ou me via diante de algum professor nas famosas provas orais. Era ali que eu me dizia: e se não der?

Demonstrar minhas fraquezas é uma dificuldade minha. Falar que está difícil, que não sei se vai dar, que estou com medo ou que algo está ruim é alguma coisa que normalmente eu não faço. E não é por orgulho, é porque eu normalmente não vivo mesmo as dificuldades desta forma, não as encaro assim como obstáculo que elas parecem ser quando a gente exprime a coisa deste jeito.

 No meio disso tudo eu tive a chance muito viva de relembrar algo que parece evidente a respeito de possibilidades, mas que acaba não sendo. Toda experiência tem uma chance de dar certo e outra de dar errado. Nem mais, nem menos. Estatística pura. Meio a meio. Quando eu comecei a me ver fazendo por algumas vezes a pergunta ali de cima, então eu me dizia: Se der errado como eu vou ter coragem de dizer isso para as pessoas? Várias das pessoas que conheço que não conseguiram seus mestrados por aqui não tiveram coragem de assumir, preferiram deixar por isso mesmo e são obrigadas a passar a vida sorrindo amarelo cada vez que alguém toca no assunto que deveria fazer parte de seus preferidos.

 E foi em momentos em que eu refletia sobre o significado das nossas conquistas e fracassos que eu disse a mim mesma que independente do resultado, eu iria fazer este post, para dizer o que finalmente eu quero dizer. A gente não está na vida competindo com ninguém. Os desafios aos quais nos submetemos não tem nada a ver com ganhar e perder para o outro. O resultado de uma experiência passa sim por chegar aonde a gente almejou, mas tem tanta tanta coisa no caminho. É no percurso que a vida acontece. Se olhar no espelho e se dizer que não deu, mas que valeu é um dos poucos presentes que a gente merece se dar. Não ter vergonha por não ter controle de tudo, mas assumir que temos controle sobre a maneira como escolhemos lidar com cada coisa que acontece é essencial. Aceitar a importância de perceber que ainda que percamos algo, o que interessa no final é o que a gente ganha, é viver.

Eu me lembro ainda de que quando eu oficialmente anunciei que eu ia passar uns tempos na França, uma das minhas supostas grandes amigas, que faz parte do grupo de pessoas que deveria efetivamente estimular meus projetos menos óbvios, soltou alguma coisa como: “Ai amiga, tem certeza? Sei não hein? Acho que você devia ficar por aqui mesmo. Muito difícil. Você nem fala a língua, já é difícil em português, imagina em francês”. Eu poderia ter duvidado de mim, colocado em questão minhas habilidades de fazer alguma coisa diferente e como estou aqui hoje escrevendo este post é óbvio que não foi isso que eu fiz. Isso faz mais de dois anos e eu não esqueci, simplesmente porque nunca saiu da minha cabeça quanta coisa além dos livros esta minha amiga tinha que aprender e que se eu pudesse eu tentaria ensinar, com ou sem o mestrado.

Eu não pedi nada quando eu vim. Não pedi para alcançar o nível da língua necessário, não pedi para ser aceita na universidade, não pedi para ter uma vaga para estrangeiros no curso que eu queria, não pedi para ser aprovada. Mas pedi sim que não importasse o que acontecesse e para onde meus caminhos fossem levados, eu queria muito aprender todos os dias, sobre a vida, sobre o mundo, sobre mim e sobre ser um ser humano melhor.

A isso tudo, ainda se aliou um fato. Eu vim sim, para cumprir em princípio um objetivo acadêmico, mas  antes de colocar os pés aqui eu desejei muito fazer isso de forma equilibrada. Eu não queria passar meus dias enfiada na biblioteca. Não queria que fosse um objetivo puramente profissional. Eu queria uma vida. Queria tocar este mundo, este povo, esta cidade. E esta linha aí ó,  é tênue. Houve dias em que eu deveria ter estudado e sai para tomar vinho. Houve dias que eu poderia talvez ter saído para dar uma namorada e fiquei para dar mais uma estudada. Mas a verdade é que a gente só sabe se está dosando isso certo, quando é tarde demais. Como tudo na vida. A gente só sabe se deu errado, depois que percebe que não deveria ter feito tal coisa ou que não dá mais tempo para fazer uma outra. Em qualquer dos casos a responsabilidade é integralmente nossa.

Bom, e aí entre os incentivos e contra incentivos que eu mesma ou as pessoas ao meu redor me deram, eu decidi sim que se eu acaso não conseguisse o mestrado, eu viria aqui de peito aberto dizer que não tinha dado, que eu tinha mal calculado, que eu tinha ido com muita sede ao pote, mas que tinha valido a pena cada noite mal dormida, cada apresentação de trabalho, cada artigo feito, cada pessoa que cruzou meu caminho, cada dia de uma trajetória programada para ser mais curta, mas que se estendeu por estes quase dois aninhos.

E ontem, após receber uma ligação do diretor do meu mestrado, eu resolvi que valia vir aqui dizer. Não super valorizo a conquista em si, porque apesar dos fatores sorte, acaso, azar, existe um elemento forte que é meio matemático, que é se empenhar e ter resultados. E venho sim mais realizada do que talvez eu estivesse em uma outra circunstância, mas o objetivo ainda é o mesmo. É chamar atenção para o fato de que as experiências que a gente vive só fazem sentido no todo. É sim e foi sim uma enorme satisfação de ter tido meu mestrado, mas mais do que o resultado, valeu o percurso e ele teria valido de toda forma.

Valeu pelos amigos que fiz, pelas pessoas que me ajudaram, por minhas duplas nos trabalhos, por minha diretora da dissertação, por ter sido a única estrangeira na sala, por ter aprendido tanto com meus colegas de sala e ensinado de volta, por ter feito mais que colegas de sala, por ter tido a chance de estudar em uma universidade que tem como quintal o parque que se tornou um dos meus lares. E o resto, o resto é tudo uma enorme bobagem.

Valeu ainda pelo tema da dissertação que caiu feito acaso nos meus braços. E me levou a recomeçar do zero minha pesquisa faltando muito menos tempo do que eu teria pensado que eu precisava. E que longe de parecer um acaso encheu os jornais uma semana antes da minha defesa com aquela foto dramática do imigrantezinho morto na beira da praia, o que me fez conseguir colocar tanta alma nas palavras no momento da minha defesa.

O resultado oficial veio nos 45’ do segundo tempo, quase dois anos depois dos meus pészinhos terem tocado o solo francês pela primeira vez e muito próximo do momento em que eles partem daqui. E eu fiquei mais feliz do que imaginava. Quis fazer um monte de coisas, mas só abri o celular e mandei uma dezeninha de mensagens para um número muito restrito de pessoas que eu sei que me desejam um bem real, dentre as quais, claro, as duas que tornaram tudo isso possível.


A tal joaninha pousou na capa do meu primeiro livro sobre meu tema. Era de noite, véspera da data final para depositar a dissertação e eu tinha acabado de fazer a última leitura. Foi ali, naquele segundo que meu coração me disse pela primeira vez que parecia que tudo ia sim funcionar: eu tinha feito minha parte, eu acredito que as coisas melhores sempre estão por vir e eu recebi uma sorte em forma de joaninha. Ali, com isso ao meu alcance eu tive tudo, até certeza, de que eu tinha tudo que eu precisava, uma joaninha e um pouco mais.

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Misto-quente com catchup [e saudade].



Você deve estar aí de cima pensando: “Ê, gordinha, se é para fazer um post de aniversário com nome de comida, pelo menos que seja brigadeiro ou bolo”.

Te imaginei dizendo isso e senti meu coração se esmagar por 4 segundos com uma falta imensa de nós nos sorrindo enquanto nos olhávamos. Sinto este tipo de falta sabia? De aparentes pequeniníssimos detalhes das nossas vidas. Alguns de um nível exclusivamente meu de esquisitice, mas todos pertencentes intensamente a nós dois.

Não sei se você se lembra, (porque não sei se você tem tempo para as coisas daqui, não sei se você é uma alminha, um anjo ou apenas a melhor representação da palavra memória). Mas voltando ao assunto, não sei se você lembra que nos últimos tempos a gente estava com um hábito específico, dentre tantos.

Toda tarde enquanto assistíamos televisão quando eu dizia que ia me preparar um lanche você falava que também queria e me pedia para preparar a mesma coisa para você. Dois segundos depois de eu chegar na cozinha ouvia seus passinhos descendo as escadas. Sua desculpa era que você sabia fazer aquilo melhor que eu, mas na verdade eu sei que te batia aquele vazio de saudade, porque a maior distância que conhecíamos naquela boa época era aquela entre a sala e a cozinha. E já parecia enorme.

Aí você me pentelhava, palpitava, a gente abria os armários, procurava qualquer coisa mirabolante para fazer e acabávamos com você dizendo que ia preparar sua especialidade. Era um misto-quente gorduroso com requeijão, queijo amarelo e entupido de catchup e eu não sei porque ele parecia o melhor misto quente que já existiu. Você fazia para nós dois, enchia dois copos de Coca-cola e quando a gente subia de volta para a sala você sempre dizia sorrindo: “imitona!” e a gente ria. Mesmo sem saber o porquê ou qual a graça, mas tinha alguma.

Eu não sei quanto tempo este ritual durou. Algumas semanas, alguns meses talvez, mas o suficiente para eu relacionar o gosto deste misto-quente a qualquer coisa muito próxima de felicidade completa.



Saudade. s.f. Lembrança triste e suave de pessoas ou coisas distantes ou extintas pela ausência; nostalgia. 

Aí sabe? Dentre as coisas que sua partida trouxe e levou, hoje me dei conta de mais uma delas e de como você deu uma avacalhada geral por aqui.

Eu desaprendi absolutamente a ter saudades do passado. Eu desaprendi absolutamente a me doer pelo que já foi. Para mim faltou total lógica do tal do Aurélio em dizer que sentimos saudades do que já passou, está distante ou se extinguiu. O que já passou é a única coisa que efetivamente é nossa propriedade. O que já passou é meu, ninguém é capaz de levar. Todos nossos momentos me pertencem integralmente e ainda passam em minha cabeça aleatoriamente com vida própria quando bem entendem. E eu não sinto saudade. Eu sinto apenas felicidade, pura e boa, por ter tido tantas inúmeras lembranças para chamar de minhas pela vida afora.

Mas a saudade...Ah!, você me paga. Me aproprio da palavra, mas o que eu chamo de saudade não corresponde nem mesmo a definição do dicionário. Você alterou o significado dela e modificou minha maneira de a relacionar com a realidade. Tenho uma eterna e complicada saudade do que não foi. Vivo em mágoa constante com todas as impossibilidades. Por tudo que eu queria fazer e não vou poder. Me doo intensamente quando tenho histórias interrompidas. Você me ferrou. Não consigo fazer as pazes com quem me tira o que está por vir. Não consigo simplesmente engolir quando a vida me diz que eu não posso viver uma pessoa, um lugar, um amor. Não aceito este não do que ainda não foi. Isso vale para você e para o resto.

Hoje só queria que você soubesse que se de um lado você estragou nossos fevereiros com um tantão de feridas com cicatrizes estranhas, nossos agostos nos pertencerão para sempre. Já gostei mais de comemorar aniversário quando na cadeirinha do lado, na mesa do lado, no bolo do lado, tinha você, dançando esquisito, me dando algum mata-leão de amor, gritando que você tinha pego toda a beleza da família ou simplesmente me abraçando suave com uma postura firme e delicada de quem cresceu e é feliz.

Mas mesmo já tendo sido melhor, este sempre vai ser nosso mês, o mês de ver papai inventando um mundo para nós, mamãe comprando mil presentes, da preparação das festinhas, de reunir os amigos que a gente aprendeu a dividir, dos porres supervisionados por Papi e Mami no que a gente chamou de quintal, mas era a materialização do paraíso e a gente ainda não sabia.

Obrigada por ter se tornado meu melhor amigo antes de partir. Obrigada por ter ficado mais um pouco. Obrigada por ser esta lembrança cheia, que transborda. Obrigada por ter me sorrido e olhado para trás e nos meus olhos na última vez que eu te vi. Obrigada por não me deixar sozinha na cozinha e pelos mistos-quentes com catchup.

Saudade filha de uma puta (irmã de menino tem direito à um palavrão vez ou outra) que te queria do meu lado viajando por aqui ou me esperando no aeroporto logo mais para me dizer que é para eu parar de inventar de ir embora.


Só enquanto eu respirar, bocudinho, só enquanto eu respirar vou me lembrar de você.
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