Isso mal pode ser chamado de uma despedida de verdade. Eles
apenas repetiram pela última vez um ritual que já haviam feito centenas de
vezes no tempo em que tiveram suas vidas divididas.
Ela se assentou na bancada da cozinha. Pegou seus anéis que
colocava ali um segundo depois de entrar no apartamento. Balançou os pés com
suas meinhas coloridas que ele gostava tanto, esperando que ele pegasse suas
botas. Depois ele ofereceu água. Ela quis. Gelada. Como todas as outras vezes.
Ela sempre se dizia que aquela água era a melhor que ela tinha bebido naquele
país e ela achava mesmo que fosse.
90% desta história foi vivida naquele apartamento. Eles se
conheceram ali mesmo. A primeira vez que se viram e agora a última. Ela se
lembra de que no segundo em que o olhou nos olhos pela primeira vez teve
certeza que ainda iria amar aquele cara. Ela não sabia que tipo de amor ia ser,
nem quanto tempo ia durar. E nem se importava. Mas soube que ele ia ser uma das
suas pessoas. Ela só não soube que ia ser tanto. Só não soube que ele ia passar
por cima de tantas coisas para estar do seu lado, nem que ele fosse
efetivamente pedi-la só para ele. Só não soube que eles iam inventar um modo
particular de fazer esta coisa toda e ainda assim poderia funcionar.
Ela deixou para trás algumas coisas na porta do armário que
mereceu. Ele que as tire de lá quando sentir que deve, quando isso tudo não os
pertencer mais. Então pode ser hoje no fim da tarde ou amanhã pela manhã, pode
até ser agora ou pode ser quando ele achar o último dos 28 bilhetinhos que ela
deixou espalhados pela casa em cada parte disso que lhe pertenceu até aqui.
Eles montaram o quarto novo juntos e acho que isso vai fazer
ele lembrar dela. Principalmente o enfeite que ele não queria na parede e a
almofada que não combina com nada. E acho que ele vai ter alguma raiva dela por
isso em algum momento. E acho que isso pode ser bom. Ela foi e prometeu
facilitar sua partida. Prometeu não dizer nunca se ela ainda o amar depois de
hoje e nunca o chamar se sentir saudades. Uma vez ele disse e pareceu verdade
que se ela não o amasse de volta ia ser tudo mais fácil. Acho que seria mesmo.
Então, enquanto ele colocou as botinhas nela, ela o beijou
no alto da cabeça. Ele sorriu para ela ajoelhado e brincou de tirar uma aliança
do bolso como fazia todas as vezes. Ela fez uma careta, o chamou de idiota e
gritou um "J’accepteeeee" desafinado. Tudo sempre igual. Mesmo que
depois de uma certa ocasião esta brincadeira tenha ficado mais desconfortável
do que engraçada. Nesta hora ela se apaixonou pelo sorriso dele 32 vezes, uma
para cada milésimo de segundo que ele gastou até levantar e beijar aquele
cantinho mágico entre o nariz e a bochecha dela (o preferido dele). Ela pulou
do banquinho, pegou sua bolsa em cima da mesa.
Eles foram até o corredor, cada um falou um número antes de
apertar o botão do elevador tentando adivinhar de que andar ele vinha. Ela
acertou como sempre e se fosse possível dava para dizer que ele fazia de propósito
para ver ela comemorar dançando e rir alto. Ele não é de rir nem de sorrir
muito. Foi o primeiro alerta feito por sua mãe quando elas se conheceram, como
se fosse possível alguém não perceber isso. Mas o sorriso dele sempre foi fácil
para ela, sempre. Não chamaria de barulhentas gargalhadas, mas era um sorriso
largo, meio mole, branquinho e verdadeiro, muito verdadeiro.
Ai o elevador chegou, ela deitou no peito dele três segundos
e o beijou no espacinho entre o peito e o pescoço (o preferido dela!). Ele
estava encostado no vão da porta e não se moveu. Ela sorriu, entrou no elevador
e a porta fechou. Foi tudo igual, sempre. Com a única e ensurdecedora diferença
de que era esta a última e eles sabiam. Talvez eles até se vejam de novo,
talvez se cruzem por acaso ou não. Mas esta história, como foi vivida até ali,
deixou de os pertencer no segundo em que a porta do elevador fechou entre eles.
Começa aqui uma página nova de suas histórias. Mas não é
mais uma história deles. É a dele. E é a dela. Quando a porta do elevador
fechou entre eles, as pernas dela bambearam. Ela tinha se prometido que não ia
chorar.Ele desviou o olhar do dela um segundo antes e pareceu medo. Ela ficou
com medo e também abaixou o dela. Ela não sabe se ele teve tempo de remontar o
olhar. Ela não teve. A última coisa que viu foram os pés dele.
Ela queria que ele soubesse que quando chegou na rua tudo
rodou. Ela achou que ia vomitar. Ela se assentou na beira do passeio e chorou.
E quis voltar e dizer que queria ficar mais um pouco. Mas foi embora. Eles
procuraram tantas e tantas manhãs uma música para chamar de deles e neste
momento ela só agradeceu por não tê-la baixado no seu celular. Ainda que ela
tenha desconfiado que qualquer nota musical que tocou desde que ela colocou os
pés nesta cidade vai lembrar os dois. E ainda que ela soubesse que de toda
forma quando ela estivesse longe ela ia se lembrar de como ele a beijava, do
jeitinho que o Ed cantou.
Ela viveu sim alguns outros amores e paixões nesta cidade
que não carrega o título de cidade mais romântica por acaso. Mas faltou ele ter
absoluta certeza que ele foi o amor mais magicamente estranho que ela já teve.
E ela queria pedir desculpas pelas vezes que o magoou e sabe que fez, por ter
dito não para única coisa que ele pediu e por não ser o tipo de pessoa que
deixa o amor furar fila de outros tantos planos para a vida. Ela disse tantas
vezes: o amor não é confiável, ele vira pó, ele sempre vira pó. Ela queria que
ele acreditasse nela. Que isso também ia acontecer com eles. E ela também queria
acreditar.
E ela queria que ele soubesse que este amor teve o tamanho
da Torre Eiffel. E queria que ele a tivesse visto chorar para ter certeza,
porque ele dizia que não era normal que ela não chorasse nunca, exceto naqueles
episódios de Grey’s Anatomy. Na última vez que ele viajou, pouco mais de um mês
atrás, quando foi pegar a correspondência e molhar as plantas, ela se assentou
ali no chão da sala e passaram mais coisas na sua cabeça do que se poderia
imaginar. Ela ficou ali umas meia hora ou mais, não tem certeza. E a única
coisa que consegue lembrar agora é do cheiro daquela casa. Não é o dela, nem o
dele, mas vai ser o cheiro que vai sempre a fazer reviver as centenas de
momentos bons ou não que passaram no apartamento que era dele e ele sempre chamou
de “nosso”, talvez como um jeito de a convencer a ficar mais um pouco.
Ela queria que ele soubesse isso tudo, mas ele não vai
saber. Ela transborda quando não cabe nela, mas vai fazer isso longe dos olhos
dele. Ela achou que este pode ser o jeito mais fácil. Com o sabor menos amargo
de uma partida silenciosa, que não deixa portas abertas, espaço para
interpretações ou esperas intermináveis por algo que não está destinado a
acontecer. A única coisa que eles precisavam saber é que ela estava indo e bastou.
Certamente uma das grandes lembranças que ela leva desta
vida que fica para trás, ele valeu o registro. Ela o amou de verdade até às
12h37 daquela sexta-feira, 25 de setembro de 2015. Tudo no tempo regulamentar,
sem direito à prorrogação.