segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Em mandarim para um alemão.


Quando eu vim para França trouxe dois livros escritos em português. Um, presente de véspera das minhas duas companheiras de trabalho, rotina e vida. Outro, indicação de uma carinha aí que se foi, mas já dividiu comigo, além dos livros, algum tipo de vida. Nenhum dos dois foram ainda lidos. Eles moram na mesa de vidro do meu quarto e conversam comigo todos os dias me fazendo lembrar coisas que eu nem quero mesmo esquecer. Mas de toda forma, não, não foram lidos até este momento.

Esta história aí começou quando eu desembarquei por aqui, com uma bagagem cheia de livros de gramática francesa e um não saber bem por onde começar. Ali eu decidi que não leria mais em português até eu sentir que era a hora. Eu não queria só “saber” francês. Eu queria mergulhar nesta língua, neste mundo, em um universo infinito de palavras virgens de sentimento para mim. Minha vida é feita de palavras. Sempre foi. Sempre precisei delas para me entender, para me salvar de mim mesma, para me reconstruir. Me faço, desfaço. Nasço, morro e renasço através delas. Fui mais feliz depois que me aprendi assim, que aprendi a me traduzir, a ler minhas dores, meus amores, meus fracassos. E alcançar com as mãos este infinito de palavras é o que me permite nunca estar satisfeita com o mais ou menos e querer sempre mais.

Escolher outra língua significou dar de cara com um universo infinito de possibilidades, de palavras todas prontas para ganhar um significado novo para uma vida nova. E esta oportunidade eu não podia perder. “A menina quebrada” e “Shantaram” ficaram sobre a tal mesa de vidro e me perguntavam todos os dias: “Mas até quando?”. Eu meio constrangida respondia: “Eu não sei”. E completava sempre meio sussurando: “E nem me importa saber.” Ou era o que eu pensava.

Mas há alguns dias alguma coisa começou a mudar. Não sei exatamente como foi, mas me lembro bem de um momento em especial. Eu estava lendo, assentadinha, no metrô, devia ter em torno de vinte pessoas por ali ao meu redor, mas de repente, não tinha mais, só restava eu e Mersault, vindo direto da mente brilhante de Camus. De repente só tínhamos eu e ele nos sentindo juntos tão estranhos, como quem não faz nunca integralmente parte do ambiente em que está. Eu me vi nele, ele se viu em mim. Me achei naquelas palavras como se eu as tivesse escrito e isso nunca tinha acontecido nesta nova língua. Isso que me faz sentir viva com os livros, nunca tinha acontecido com uma história em francês. Meus olhos encheram de água e eu quis poder conhecê-lo para dizer que ser estranho pode ser mais legal do que ser normal.

Mas hoje, especialmente hoje, uma informação solta voou para o lado de cá do oceano. E eu me quebrei um pouquinho. Do meu jeito. Sem deixar desorganizar minha intensa, às vezes inocente, felicidade. Sem deixar de acreditar na minha intuição, mas tendo que lidar com uma realidade de que ela às vezes vai mesmo errar. Sem deixar de interpretar o sinal por trás de cada situação, neste caso de olhar só em frente. E transbordou uma aguinha salgada dos meus olhos puxados marrons. E eu assentei em um banquinho do parque da universidade para escrever, para me refazer, me reconstruir, para organizar. Para dizer a mim mesma quem  coordena quem aqui nesta briga da razão com o coração.

Mas a gente se desentendeu, eu e as palavras. Eu sentia em francês e pensava em português, ou o contrário. Eu sentia em português e pensava em francês. Eram milhares de mistérios e virginidades rompidos, violados, se revelando sobre meus olhos. Eu queria aprender a vida em palavras nesta outra língua, mas ali naquela mistura, percebi que eu não estou pronta para abrir mão do passaporte sem visto que as palavras em português representam; para passagem só de ida para um universo infinito que eu acessei através da língua mais viva que eu já conheci, a minha própria e às vezes mesmo inventada.

Eu dobrei o texto dolorido, quase em mosaico, com mil pedaços desordenados de mim. Peguei minha mochila largada no chão e vim rápido para casa. Entrei correndo no meu quarto. Peguei meus dois livros nos braços, fiz as pazes com eles e respondi a pergunta de sempre com um: “Até aqui”. “Shantaram” voltou para mesa, não sei de fato se poderemos nos reconciliar definitivamente. Fiquei com “A menina quebrada”. E ele já está ao meu lado esperando que eu acabe de escrever pronto para ser lido.

Mas com toda poesia, possibilidade e vida que eu sinto nas duas línguas da minha história, eu entendi olhando para este papel dobrado ao meu lado que o sentimento não precisa de tradução. O destino dos sentimentos não são as palavras, são as pessoas. Quando elas estão prontas para receber, então, tradução feita. Quando não, é como falar em mandarim para um alemão.  O que define o que eu sinto não são, então, as palavras. A ordem não é esta. É o que eu sinto que define o que eu escrevo. Em português, em francês, como for. E eu não vou terminar fazendo nenhuma rima óbvia de amor.

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