Quando eu vim para França trouxe dois livros escritos em português. Um, presente de véspera das minhas duas companheiras de trabalho, rotina e vida. Outro, indicação de uma carinha aí que se foi, mas já dividiu comigo, além dos livros, algum tipo de vida. Nenhum dos dois foram ainda lidos. Eles moram na mesa de vidro do meu quarto e conversam comigo todos os dias me fazendo lembrar coisas que eu nem quero mesmo esquecer. Mas de toda forma, não, não foram lidos até este momento.
Esta história aí começou quando eu desembarquei
por aqui, com uma bagagem cheia de livros de gramática francesa e um não saber
bem por onde começar. Ali eu decidi que não leria mais em português até eu
sentir que era a hora. Eu não queria só “saber” francês. Eu queria mergulhar
nesta língua, neste mundo, em um universo infinito de palavras virgens de
sentimento para mim. Minha vida é feita de palavras. Sempre foi. Sempre
precisei delas para me entender, para me salvar de mim mesma, para me
reconstruir. Me faço, desfaço. Nasço, morro e renasço através delas. Fui mais
feliz depois que me aprendi assim, que aprendi a me traduzir, a ler minhas dores,
meus amores, meus fracassos. E alcançar com as mãos este infinito de palavras é
o que me permite nunca estar satisfeita com o mais ou menos e querer sempre
mais.
Escolher outra língua significou dar de cara
com um universo infinito de possibilidades, de palavras todas prontas para
ganhar um significado novo para uma vida nova. E esta oportunidade eu não podia
perder. “A menina quebrada” e “Shantaram” ficaram sobre a tal mesa de vidro e me
perguntavam todos os dias: “Mas até quando?”. Eu meio constrangida respondia: “Eu
não sei”. E completava sempre meio sussurando: “E nem me importa saber.” Ou era
o que eu pensava.
Mas há alguns dias alguma coisa começou a
mudar. Não sei exatamente como foi, mas me lembro bem de um momento em
especial. Eu estava lendo, assentadinha, no metrô, devia ter em torno de vinte
pessoas por ali ao meu redor, mas de repente, não tinha mais, só restava eu e Mersault, vindo direto da mente
brilhante de Camus. De repente só tínhamos eu e ele nos sentindo juntos tão
estranhos, como quem não faz nunca integralmente parte do ambiente em que está.
Eu me vi nele, ele se viu em mim. Me achei naquelas palavras como se eu as
tivesse escrito e isso nunca tinha acontecido nesta nova língua. Isso que me
faz sentir viva com os livros, nunca tinha acontecido com uma história em
francês. Meus olhos encheram de água e eu quis poder conhecê-lo para dizer que
ser estranho pode ser mais legal do que ser normal.
Mas hoje, especialmente hoje, uma informação
solta voou para o lado de cá do oceano. E eu me quebrei um pouquinho. Do meu
jeito. Sem deixar desorganizar minha intensa, às vezes inocente, felicidade.
Sem deixar de acreditar na minha intuição, mas tendo que lidar com uma
realidade de que ela às vezes vai mesmo errar. Sem deixar de interpretar o
sinal por trás de cada situação, neste caso de olhar só em frente. E
transbordou uma aguinha salgada dos meus olhos puxados marrons. E eu assentei
em um banquinho do parque da universidade para escrever, para me refazer, me reconstruir,
para organizar. Para dizer a mim mesma quem coordena quem aqui nesta briga da razão com o
coração.
Mas a gente se desentendeu, eu e as palavras.
Eu sentia em francês e pensava em português, ou o contrário. Eu sentia em
português e pensava em francês. Eram milhares de mistérios e virginidades
rompidos, violados, se revelando sobre meus olhos. Eu queria aprender a vida em
palavras nesta outra língua, mas ali naquela mistura, percebi que eu não estou
pronta para abrir mão do passaporte sem visto que as palavras em português
representam; para passagem só de ida para um universo infinito que eu acessei
através da língua mais viva que eu já conheci, a minha própria e às vezes mesmo
inventada.
Eu dobrei o texto dolorido, quase em mosaico,
com mil pedaços desordenados de mim. Peguei minha mochila largada no chão e vim
rápido para casa. Entrei correndo no meu quarto. Peguei meus dois livros nos
braços, fiz as pazes com eles e respondi a pergunta de sempre com um: “Até aqui”.
“Shantaram” voltou para mesa, não sei de fato se poderemos nos reconciliar
definitivamente. Fiquei com “A menina quebrada”. E ele já está ao meu lado esperando
que eu acabe de escrever pronto para ser lido.
Mas com toda poesia, possibilidade e vida que
eu sinto nas duas línguas da minha história, eu entendi olhando para este papel
dobrado ao meu lado que o sentimento não precisa de tradução. O destino dos
sentimentos não são as palavras, são as pessoas. Quando elas estão prontas para
receber, então, tradução feita. Quando não, é como falar em mandarim para um
alemão. O que define o que eu sinto não
são, então, as palavras. A ordem não é esta. É o que eu sinto que define o que
eu escrevo. Em português, em francês, como for. E eu não vou terminar fazendo
nenhuma rima óbvia de amor.