Como uma palavra que só existe no dicionário pode ter tantos
significados? Como é que tantos outros povos conseguem explicar o que sentem sem
esta palavrinha cheia de mistérios que faz parte da nossa vida desde tão cedo? E, nossa, como
é difícil explicar em francês ou inglês com as minhas restrições que “tu me
manques” ou “i miss you” é muito diferente de “eu sinto saudade, eu sinto muita
saudade”.
Saudade.
Saudade.
Somos ainda tão pequenos quando a saudade bate na porta da vida. Quando no primeiro dia de aula nossos pais nos entregam nossa mochila, nossa lancheira, nos dão um beijo na testa e se despedem. Depois na escolinha quando o coleguinha mais velho rouba seu lugar na fila ou seu lápis colorido, quando você cai e se machuca ou é dia de vacinação. Mais uns anos e dormindo na casa de algum coleguinha ou de alguma tia, quando a gente acorda com algum sonho ruim de madrugada. Acho que são por aí nossas primeiras saudades, do colo dos nossos pais, das mãos dadas ou da sombra deles na porta do quarto, tudo nos dizendo que tudo vai ficar bem.
A vida vai adiante, seguimos por aí e deixamos amigos para trás, ou amigos nos deixam, mudamos de escola, de bairro, de gostos, entramos na faculdade, saímos dela, deixamos o estágio, o emprego, mudamos de turma, de namorado, de cidade. E de repente o que era, para de ser. E de novo vem ela.
Saudade.
Depois, normalmente, são eles, os anjos peludinhos que a
gente cresce aprendendo a amar. Mas algo foi mal calculado nesta história e
eles se vão sempre antes de nós. Deixam normalmente a lembrança de doces
olhares, amores incondicionais e a festinha que eles fazem todos os dias quando
a gente volta para casa, faça chuva ou sol. Lilicos, Thors, Fredericos Augustos,
Pandoras, Blacks, BJ’s, passam pela nossa vida. E um dia qualquer, após ouvir
uma desculpa esfarrapada de nossos pais tão inconsoláveis quanto nós ou de ouvir que
há um céu dos bichinhos, sem nem ter ideia do que isso quereria dizer, eles
nunca mais estão lá. E lá vem ela outra vez.
Saudade.
Então, dois infartos, a carona com o motorista errado, um tiro
vindo do namorado, um acidente sem qualquer causa aparente acontecem e a
saudade ganha sua forma mais cruel. A morte. A saudade que vem com a morte
trucida, espatifa, rompe. É a saudade que faz sentir antes da hora. Uma saudade
antecipada, que explode porque sabe o que ainda vai vir, ou melhor dizendo, o
que não vai vir. A morte é um fim. Uma transparência. Um invisível, um não
tocar. Com a notícia de uma morte, de um nunca mais, a gente sente
instantaneamente toda a dor equivalente a uma vida inteira de ausência que está
só começando ali. Se a medida da saudade fosse em calorias a saudade que vem
com a notícia da morte seria algo como o waffle com duas bolas de sorvete, calda
quente, chantilly e nutella do Alessa. Em um segundo está lá, a dor aguda de uma saudade
que ainda nem chegou; em um segundo vamos ao 163º andar do Burj Khalifa e despencamos
ao primeiro, sem cinto de segurança, sem anúncio ou amortecedor.
Até aqui esta é a saudade que eu melhor conhecia, ou a
saudade que eu pior conhecia. A saudade do que eu não ia mais ter. Sem
desmerecer as outras mortes que cruzaram meu caminho, cada uma com um gosto,
sem qualquer dúvida a perda da minha vida foi meu irmão. Foi ali que eu
aprendi que o que ficava pra trás era a lembrança e não a saudade. Que a
saudade é o que vem adiante, e começa ali no exato segundo que sucede à notícia de
uma morte. A saudade dura e cruel do que a gente não pode mais viver. A saudade
dos meus filhos sem tio. A saudade da não-carona para festa ou para academia. A
saudade do não-brinde no não-casamento dele. Ou do não-discurso dele no meu, se
eu casar. A saudade da não-foto de família completa. A saudade é do futuro que está
ali, pronto para acontecer, mas não vai.
E era esta a saudade que eu melhor conhecia. Era sobre isso
que eu poderia desenvolver uma tese de doutorado e é esta a saudade que mudou a
minha vida e me fez ser e poder ser exatamente a pessoa que eu sou, sem
superfícies, sem lógica, sem apegos conceituais. Foi esta a saudade que me
permitiu ser o tipo de pessoa que eu gostaria de conhecer. Que acendeu a luz na
minha alma para dizer que a vida termina sem aviso, que eu não queria uma existência
comum e que eu precisava fazer esta coisa de viver de um jeito diferente, mas
do meu jeito.
Aí eu resolvi fazer as malas. E mesmo que elas fossem três e
enormes, nunca tive uma sensação tão evidente de ter vindo deixando
absolutamente tudo para trás. E acho mesmo que deixei, porque o essencial não
cabe nem em todas as malas do mundo. Hoje, são exatos cinquenta e sete dias da
minha partida. E eu volto a mencionar o dicionário apenas para lembrar que a
mesma palavra que se usa para falar do ato de partir, de ir embora; se usa para
tratar do ponto de início, onde tudo começa e não deve ser por acaso. A partida.
E dentre todas as coisas, dentro todos os posts escritos com
a vista do Rio Sena ou de alguma cafeteria charmosa desta cidade mágica, minha
vida aqui me apresentou uma outra saudade. Agora, não mais antecipada, não a
que se sente antes do tempo, como a que eu senti quando vi meus pais pelo vidro
pela última vez antes de vir. A saudade de agora, vem chegando devagarzinho, coerente,
acompanhando o tempo, crescendo aos poucos e ativada pelas mais inesperadas
situações.
Cada vez que encontro no meio das minhas coisas algum item
que eu não tinha conseguido colocar na mala, sei que minha mãe leu minhas
vontades e deu um jeito de encaixar aquilo ali. Nesta hora, a saudade dos seus
cuidados se instala por aqui. Quando tenho que ser forte para fazer sozinha
algo, mesmo querendo pedir ajuda, sinto saudade da atenção contínua do meu pai
me fazendo de bonequinha-do-papai e do orgulho que ele teria de me ver me virando. Quando
chega a sexta-feira e passo pelo supermercado antes de ir para casa, os vinhos
me matam de saudade das noites no quintal com os dois. Cada vez
que alguma nova amiga me olha com carinho ou me pede um conselho sinto saudades
imensas das minhas companheiras de uma vida inteira. Cada vez que algum novo
amigo ri alto de alguma coisa sem sentido que eu falo, meu coração se parte em
dez de saudade da risada dos meus bons amigos homens. Cada vez que algum homem se aproxima com
admiração e diz que as brasileiras devem ser as melhores mulheres do mundo para
se casar, eu lembro do cara que me amou o amor maior que eu já vi no mundo.
Cada vez que meu skype abre sozinho no meu computador, eu imagino meu irmão do
outro lado do mundo me chamando de marmota e dizendo que está morrendo de
saudade, mesmo sabendo que isso não pode acontecer.
A saudade que eu aprendo aqui é nova e é diferente a cada
dia. É uma saudade distante por quatro horas do fuso horário ou dez de distância. É uma saudade que
chega a qualquer hora e tem impulso nas mais diversas coisas, mas que não serve
de desculpa para interromper nada que eu esteja fazendo. É uma saudade que não
espera para acontecer, mas tantas vezes tem que esperar para ser cuidada. É uma
saudade do que está sendo; a saudade da vida que está acontecendo ao mesmo
tempo que a vida que eu vivo aqui, mas sem mim. Minhas renúncias, meu não
estar. Só eu sei como pensei nisso ao fazer as malas e vir sem olhar para trás.
Mas escolha feita, eu acho que posso dizer que o maior sinal
de que ela foi acertada, é que mesmo com toda esta saudade, quando eu chorei
aqui, pode até ter sido de saudade, mas foi, primeiro, de felicidade. E ser feliz é o único compensador que faz
valer toda saudade que a gente tem que sentir pela vida afora.
Saudade.
Saudade.
Em dias 23 de fevereiro, sempre especialmente. Mas sempre saudades. Dele. De você. E da história inteira que está acontecendo em uma vida que já me pertenceu, mas não me pertence agora. O que sobreviver ao tempo, provavelmente, eternizado estará. E qualquer hora eu volto, ou não, porque eu não sou daqui, eu não sou daí, ou não sou de lá. Eu sou de viver e só, aqui ou em qualquer lugar.