sábado, 21 de fevereiro de 2015

Se quiser, pode ir...


“Você foi demais, você fez tudo certo, a gente não vai deixar de te amar. Mas se estiver muito ruim, se quiser descansar, pode ir”. 
Antes de vir para França eu não fiz muitos pedidos, eu não esperava muitas coisas. Na verdade eu não sou mesmo de pedir demais. Mas antes de vir eu pedi. Pedi que minha vida que ficava no Brasil fosse protegida, pedi para não ter que lidar com nenhuma morte à distância. Foi tudo que eu pedi. Eu sabia que era muita coisa. Mas mesmo sabendo que era enorme, eu me senti protegida. Me senti imunizada à uma experiência pela qual eu não queria passar. Mas eu devia saber, não depende nunca de nós. 
Eu me lembro como se fosse hoje da primeira vez que eu vi o Thorzinho. Me lembro de estar assentada em um banquinho do quintal. Meu pai tinha ido buscar ele, descumprindo a promessa anterior de que nunca mais teríamos um cãozinho, porque as partidas são sempre dolorosas demais. Mas quem por medo de amar desiste, já não está vivo. E nós não somos este tipo de família. Então, ele chegou. 
Ele já tinha quase um aninho. Estava naquela fase adolescente desengonçada, mas já dava para ver que ele ia ser maior do que podíamos imaginar. Já era grande, mas estava magricelo. E tinha muito medo. Ele tremia, hesitava em se aproximar. Ganhou um banho, mas correu para se esconder tremendo quando ligamos o secador. E algo me diz que foi ali mesmo que ele roubou o coração de todos nós lá em casa.
Isso aconteceu há quinze aninhos quando Thor entrou na família. Ele fez a casa inteira adaptar a rotina para atender suas vontades, suas manias, sua incontrolável energia. Thorzinho nos colocou juntos no quintal, para aprender a brincar, para dar banho, para nos fazer sermos mais do que nunca uma família. Acho que sempre fui tipo aquelas mães chatas, que parecem não ter outro assunto, que falam por horas e horas de detalhes intermináveis sobre os filhos que não interessam a mais ninguém.
Thorzinho era doidinho. Rasgou muitas de minhas roupas, muitos de meus documentos. Thorzinho roubou muitos lanches meus e a comida dos churrascos ou jantares, comeu o pneu e as placas dos carros lá de casa, e pás, almofadas, tapetes, travesseiros. Thorzinho fez greve de fome quando a gente viajava. Thorzinho também me fez muita raiva nesta vida. Me lembro de uma vez que ele comeu uma bota minha de R$ 600,00, que eu nunca tinha usado. No dia que eu descobri assentei no chão e chorei. Porque eu simplesmente não conseguia brigar com ele. Thorzinho me fez acobertar muitas bagunças dele. Thorzinho era enorme, mas achava que era pequenininho. Ele escondia o narizinho em qualquer cantinho e achava que ninguém podia ver ele, mesmo com o bumbum gigante todo de fora. Thorzinho assentava no nosso colo e jurava que ele cabia lá. Thorzinho jogava as pessoas no chão, encoxava as visitas, destruiu a casa inteira. Thorzinho me fez chegar atrasada no aniversário da minha cunhada, porque depois de assistir Marley&Eu no cinema, nós não pudemos fazer outra coisa que não fosse ir para casa abraçar ele bem apertado e fazer ele jurar que não ia a lugar nenhum, mesmo sem ele fazer a menor ideia do que isso queria dizer. Thorzinho me ensinou um amor que eu não conhecia.
Quando eu fui visitar o Brasil no fim do ano, meu primeiro reencontro com Thorzinho foi o primeiro momento em que eu chorei. De alívio, saudade, emoção, sei lá. Depois fui saber que ele já tinha começado a dar os primeiros sinais de que estava envelhecendo, depois fui saber que naquela manhã mesmo, pouco antes de eu chegar ele tinha passado umas horas no hospital. 
Depois que eu voltei para cá, ele melhorou de novo, o médico acertou os bons remédios. E mesmo sabendo que ele podia não aguentar até minha volta eu preferi acreditar que iria. Nesta quinta-feira, eu tive um sonho. Acordei confusa. Ele veio me ver. Na verdade era no quintal da nossa casa. E ele me dizia que não era para eu chorar, que ele estava cansado. Que ele me desculpava por ter vindo para França. E aí ele ficava deitadinho no meu colo por horas, se despedindo. 
Eu ainda não sabia, mas ele já tinha sido internado, o que eu só soube quando chamei meus pais para perguntar se ele ia bem. 
Thor é parte da família. Thor transbordou amor e assim recebendo de volta todo o amor que ele deu, sendo coberto de toda atenção possível, dividiu sua alminha pura com a nossa família durante a metade inteira da minha vida. Thor nesta manhã foi se juntar ao nosso anjo particular. 
Papi, Mami, nós, nossos fevereiros e nossos anjos. Amo vocês. Para sempre nós quatro, para sempre nós seis.


“Você foi demais, você fez tudo certo, a gente não vai deixar de te amar. Mas se estiver muito ruim, se quiser descansar, pode ir”. Isso foi o que eu disse para ele no dia desta foto, a última que a gente tirou juntos. Eu só não sabia que ele ia mesmo, mas ele foi.

Pretinho, mamãe vai para sempre morrer de saudade.
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