sábado, 23 de fevereiro de 2013

Chamem um adulto.


23 de fevereiro. Mais um ano. Menos um ano.


Primeiro ato – Evitando tragédias.

Pais tem mania de achar que há como prevenir tragédias. Tranquem bem as portas. Tomem cuidado ao chegar de madrugada em casa. Fiquem atentos com assaltantes nos sinais de trânsito. Cuidado ao sacar grandes quantias de dinheiro. Sabe o que eu acho? Que na verdade quando nos damos conta estas tragédias, - ou acidentes, fatalidades, chamem como quiserem -, já aconteceram. Nos precavemos para ter a sensação de fazer nossa parte. Mas creio que quando percebemos não há mais o que fazer. Não há mais como evitar. Não há mais como enganar o destino e o que está ali escolhido para acontecer. Sei lá. Acho que dirigir cuidadosamente, definitivamente, não adianta mais quando o carro no sentido contrário já invadiu a contramão e vai bater de frente do seu em dois segundos. Definitivamente.

Até hoje quando penso naquele dia 23, costumo lembrar de algum detalhe esquecido, que havia me escapado à memória ou que a memória bloqueou junto com os pensamentos que ela escondeu para me proteger. Acabo lembrando da presença de alguém que eu não me recordava estar lá ou de algum momento específico no meio daquelas centenas de momentos fragmentados guardados na minha mente. Dia destes percebi que não conseguia me lembrar de como foi que eu soube que ele tinha morrido. Percebi que não lembrava de quem havia me contado, olhado nos meus olhos e dito esta frase em voz alta. Fiquei pensando em que momento eu soube, então? E mesmo sem querer o pensamento me devolve para aquela noite de fevereiro daquele ano.

Estranhos na casa - o primeiro aviso.

Quando cheguei em casa havia vizinhos na porta. Olhei aquelas pessoas e entrei. Havia vizinhos dentro da minha casa, vizinhos nada íntimos dentro da minha casa. Nem sei nem dizer quem eram. Eu diria que não sei, nem nunca soube. Estranhos não entram em nossas casas. Não assim por acaso. A não ser... Bom, a não ser que tenha ocorrido algo muito grave. Algo que torne alguém vulnerável a ponto de precisar de um estranho, e alguém solidário a ponto de ajudar um estranho. Eu devia ter percebido. Quem sabe não pudesse ter feito alguma coisa. Talvez tivesse pensado em algo para enganar o destino. Sei lá. Dar meia volta, fingir que nada aconteceu, dar um sorriso para aquelas pessoas e me esconder debaixo da cama até aquilo se resolver. Não tive esta idéia. Entrei.

Portas abertas - o segundo aviso.

Talvez este tenha sido o primeiro sinal, mas não importa, vamos lá. As portas da minha casa estavam abertas. Não quero dizer destrancadas, quero dizer escancaradas. Totalmente abertas. Em regra, portas fechadas servem para nos proteger do mal que existe nas ruas não é isso? Proteger nossos bens materiais, nossa integridade física, nossa intimidade. Mas isso não faz sentido em determinadas situações. Acabaram de roubar um pedaço de uma família. Havia quatro e sobraram três. O que portas fechadas seriam capazes de proteger? De que servem portas fechadas quando já levaram o que tinha de mais valor? Que mais poderia nos importar? Não se tranca portas, carros e janelas quando algo assim já aconteceu. Como foi que eu não percebi? Talvez ali desse tempo de ter saído despistadamente, fingido que estava ao telefone. Vai ver teria dado tempo de voltar atrás, saído de cena devagarzinho. Não fiz isso. Segui em frente. Como eu disse, eu entrei.

O mundo em silêncio - o terceiro aviso (e o mais evidente).

O som sumiu. Passei pela porta da sala, a outra sala, o corredor escuro, o quarto dos meus pais. Meu pai meio de lado, meio de costas, ao telefone. Nada de som. As pessoas me olhavam, falavam comigo, mas eu não ouvia. Era como se aquelas bocas se mexessem aleatoriamente. Eu fiz uma pergunta. Não me lembro qual, porque não ouvia minha própria voz. Eu quis perguntar o que tinha acontecido. E também não me lembro do que responderam porque a minha casa inteira não tinha som. Era minha última chance de correr para enganar o destino, mas eu fiquei parada ali. Meu pai se virou e foi no olhar desesperado dele que eu soube. O olhar era desesperado e quase impaciente, como se fosse óbvio, como se o mundo inteiro já soubesse. Era como se a minha pergunta fosse idiota. E a expressão dele nunca vai sair da minha memória. Foi assim que eu soube. Foi o olhar dele que me disse e não sei se foi o que as palavras disseram. Nunca vou saber porque eu não ouvi. Melhor assim.

As próximas doze horas continuaram em silêncio e não é que as pessoas não tenham me dito nada. Eu só não me lembro.

E é por tudo isso que eu acho que nossos pais quando nos ensinam a evitar tragédias não estão fazendo direito. Eles não sabem que, na verdade, na vida algumas precauções são para nos dar a falsa sensação de segurança. Grandes tragédias chegam sem avisar, quando não se pode evitar, quando já é tarde demais. Já não dá mais para fazer muita coisa. E os sinais de que elas estão para acontecer, na verdade são avisos de que elas estão acontecendo ou já aconteceram. Não foi desta vez que deu para enganar o destino.


Segundo ato – Chamem um adulto.

Então foi assim. Foi assim que eu soube. Acho que não me lembrava até estes dias. Nunca tive, então, que passar por aquele momento dos filmes em que alguém te coloca assentado no sofá, te dá um copo de água e diz serenamente que “Sinto muito, seu irmão morreu.” E lá, nos filmes, a personagem calmamente pega um lenço e enxuga as lágrimas que escorrem lentamente pelo seu rosto.

Não, eu não tive este momento. E ainda bem que não. Eu não precisei de ouvir esta frase e demorei alguns meses para dizer ela em voz alta. E também não tive que ser serena, nem contida. Nem tive a notícia no meu local de trabalho ou em algum lugar que me exigisse controle. Nem longe dos meus pais. Meu momento foi exatamente como tudo na minha vida. Foi de verdade, foi real e pareceu mentira de tão duro. E foi ao lado das duas pessoas que me sobraram na vida que eu mais amava. E foi horrível. Mas foi como tinha que ser. Eu fui ao chão. Senti meu coração se despedaçando em câmera lenta em um milhão de pedacinhos e fechei os olhos. E senti todo amor que havia dentro de mim querendo explodir. E tive uma seqüencia de milhares e milhares de imagens passando na minha mente que eu queria muito interromper. Eu queria não estar ali. Eu queria voltar um segundo antes. Só para curtir minha vida por mais um segundo sem aquela sensação. É isso. Acho que o que melhor explica o desespero daquele momento é isso. A vontade de viver de novo, nem que fosse por dez segundos sem ser alguém que perdeu um irmão. Ainda é algo que eu queria re-experimentar. Mas voltando ao momento. Sabe aqueles momentos da nossa infância em que você não sabe como agir, quando alguém se machuca, algo se quebra, o neném se engasga, seu primo pequeno quer ir ao banheiro e a a primeira idéia que vem a nossa cabeça é: chamem um adulto. Ali, enquanto eu tentava entender aquela dor, naquele mundo sem som, a primeira idéia que me passou pela cabeça foi esta, chamem um adulto, meus adultos, meus pais. E foi aí que eu me deparei com um dos maiores problemas da minha vida. Eu não tinha adultos para chamar. Meus adultos estavam estraçalhados na minha frente, em mil pedacinhos. Estavam espalhados por aquele quarto. Talvez o vento tivesse já levado pedaços deles pela varanda, espalhado pela cidade, pelo país, quem sabe pelo mundo. E eu não tinha idéia de quanto tempo eles levariam para refazer aquela bagunça. Foi aí que entendi que eu ia ter que me virar, que eles iam precisar de mim. Não sei se mais, mas de um jeito diferente do que eu iria precisar deles. Ali eu virei meu próprio adulto. Ou pelo menos me dispus a tentar. Prometi, sem saber se ia poder cumprir, que eles iam me ver só de pé. Eu tentei. Fiz o que eu pude. Depois daqueles dias, depois da volta para casa, ao trabalho, nunca mais chorei por isso na frente deles. De ninguém, na verdade. Sei que ela sabe, muitas vezes vê meu olhinho inchado que me entrega, meu narizinho vermelho. Mas o quanto deu, eu tentei. Ainda tento. E sempre vou tentar. No que diz respeito a este assunto, felizmente ou não, eu nunca mais tive meus adultos e nem nunca mais quero ter. Os pedaços estão sendo encontrados, como eu imaginava, espalhados pela varanda, pela cidade, pelo mundo. E eu, definitivamente, mesmo sem um pedaço inteiro de mim sou uma pessoa completamente diferente antes e depois daquela quinta-feira. E sou melhor.

E então as cortinas se fecham. Fim do espetáculo.


Por hoje que o vento espalhe uma boa saudade. Que o próximo dia 23 demore a chegar e venha devagarzinho e suave. Que todos os dias 23 continuem sendo dias lindos, de céu aberto. Que as lembranças que reapareçam sejam apenas as menos doídas. Que continue esquecido por mim aquilo que não precisa de ser lembrado sobre aqueles dias. Que este dia tenha sempre este silêncio diferente. Que a vida siga leve e boa. Ter um anjo particular é para poucos e eu tenho o melhor. Sigo, então, cheia da melhor saudade da melhor vida vivida a quatro pelos longos e melhores anos que já existiram.

 P.s.: Na minha cabeça o terceiro ato estava pronto, mas estes posts são dolorosos de escrever. Estes minutos aqui são meus momentos de maior contato com alguns instantes da minha vida. Principalmente com os mais difíceis de absorver e entender. Ele vai virar um outro post qualquer. Em uma tarde bonita.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Versões de nós mesmos.


Olha só, tento entender. Para que iria você me procurar, não é mesmo? Que mais você ia querer ouvir? Que mais poderia ser dito? O que haveria a se acrescentar, não é isso? Já há outra versão contada. Já te contaram uma boa história. Já existe um conto feito. As redes sociais disseram algo também. Ora sob o filtro Lo-Fi. Ora sob as palavras de Clarice Lispector. Mas sério? Foi tudo que você pôde ver? Depois de tudo? Esta versão inventada ou contada de mim mesma? Ficção? Vida real? Consegue distinguir uma coisa da outra? Sério que meus olhos e meu sorriso não te dizem mais nada? Será que não há nada mais que você possa querer saber? Isso é o bastante? Tanta intensidade pode se transformar em tanta superficialidade? O que contaram por aí é suficiente? O que você consegue ver basta? Meu sorriso te diz alguma coisa além de alegria? Não? Sério, nem com esforço? Nada? Os olhos, então? Também não? Não consegue imaginar que a estampa é só disfarce? Só distração? Você acha mesmo que sou só isso que se vê? Sério? Não, não posso me contentar que tão pouco te baste.

Eu sei, sua versão de si mesmo é mais enxuta. Tão pouco é contado, quase nada é dito. O que não quer dizer que silêncios não me digam muitas coisas. Seu sorriso e seus olhares me dizem muito. Me disseram muito, na verdade. Agora, são só um vazio. Uma falta, uma ausência. Uma dúvida. Agora ambos, - sua boca e olhos -, me fazem perguntas sobre aquilo que eu achei saber sobre você. Seu silêncio pergunta na minha cara se o que eu vi aí foi real. Sua inércia me pergunta aos berros se você pode ter me enganado tanto assim. Continuo não me contentando. Não me contento em saber tão pouco. Nem em ter. Não posso aceitar este nada. Acho que você é mais. Acho que quer mais. Acho que vale mais, cabe mais. Vive mais. Vive mais? Seja mais? Seja meu? Seja mais meu? Continuo esperando que você se arrisque mais, talvez, de repente. E veja quanto o lado de cá pode ser espetacular. Não adianta, não me contento, preciso acreditar que o que quero é realizável.

Será que somos tão diferentes assim? Ou quem me enganou fui eu? Quem engana quem quando alguém se engana? Eu engano você ou você se engana sozinho? Você me engana a seu respeito ou faço isso sozinha? O que somos capazes de dizer sobre nós mesmos? O que cada um de nós é, além de verdades inventadas? Personagens de uma história nem sempre real. Com finais nem sempre felizes. Quase sempre não felizes. Será que minha versão de você não foi criada só para a minha diversão? No fundo uma versão não contada às vezes diz mais do que aquela que é gritada, escancarada. Eu, por exemplo, quando eu não sei, invento. Quando não te entendo, finjo. Quando não te vejo, crio. Sobre mim o que eu grito traz muito menos de mim do que você imagina. Imaginação. Não me imagine. Me saiba. Não me procure. Me ache. Não acredite em versões de mim. Descubra as verdadeiras. Ou descubra a que melhor te convém. Há sempre uma versão boa de nós mesmos para cada pessoa.

Seja uma versão boa para mim. Descubra a boa versão que existe em mim para você. Eu sei que eu vejo o mesmo que você. E eu sei que repito as mesmas palavras para dizer cada vez algo diferente. Sempre igual, para dizer outra coisa. A rima é a mesma, para dizer o contrário. A direção se repete, para chegar ao avesso. Sempre confusa. Mas ainda diferente, tranqüila e contente.
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