segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Em mandarim para um alemão.


Quando eu vim para França trouxe dois livros escritos em português. Um, presente de véspera das minhas duas companheiras de trabalho, rotina e vida. Outro, indicação de uma carinha aí que se foi, mas já dividiu comigo, além dos livros, algum tipo de vida. Nenhum dos dois foram ainda lidos. Eles moram na mesa de vidro do meu quarto e conversam comigo todos os dias me fazendo lembrar coisas que eu nem quero mesmo esquecer. Mas de toda forma, não, não foram lidos até este momento.

Esta história aí começou quando eu desembarquei por aqui, com uma bagagem cheia de livros de gramática francesa e um não saber bem por onde começar. Ali eu decidi que não leria mais em português até eu sentir que era a hora. Eu não queria só “saber” francês. Eu queria mergulhar nesta língua, neste mundo, em um universo infinito de palavras virgens de sentimento para mim. Minha vida é feita de palavras. Sempre foi. Sempre precisei delas para me entender, para me salvar de mim mesma, para me reconstruir. Me faço, desfaço. Nasço, morro e renasço através delas. Fui mais feliz depois que me aprendi assim, que aprendi a me traduzir, a ler minhas dores, meus amores, meus fracassos. E alcançar com as mãos este infinito de palavras é o que me permite nunca estar satisfeita com o mais ou menos e querer sempre mais.

Escolher outra língua significou dar de cara com um universo infinito de possibilidades, de palavras todas prontas para ganhar um significado novo para uma vida nova. E esta oportunidade eu não podia perder. “A menina quebrada” e “Shantaram” ficaram sobre a tal mesa de vidro e me perguntavam todos os dias: “Mas até quando?”. Eu meio constrangida respondia: “Eu não sei”. E completava sempre meio sussurando: “E nem me importa saber.” Ou era o que eu pensava.

Mas há alguns dias alguma coisa começou a mudar. Não sei exatamente como foi, mas me lembro bem de um momento em especial. Eu estava lendo, assentadinha, no metrô, devia ter em torno de vinte pessoas por ali ao meu redor, mas de repente, não tinha mais, só restava eu e Mersault, vindo direto da mente brilhante de Camus. De repente só tínhamos eu e ele nos sentindo juntos tão estranhos, como quem não faz nunca integralmente parte do ambiente em que está. Eu me vi nele, ele se viu em mim. Me achei naquelas palavras como se eu as tivesse escrito e isso nunca tinha acontecido nesta nova língua. Isso que me faz sentir viva com os livros, nunca tinha acontecido com uma história em francês. Meus olhos encheram de água e eu quis poder conhecê-lo para dizer que ser estranho pode ser mais legal do que ser normal.

Mas hoje, especialmente hoje, uma informação solta voou para o lado de cá do oceano. E eu me quebrei um pouquinho. Do meu jeito. Sem deixar desorganizar minha intensa, às vezes inocente, felicidade. Sem deixar de acreditar na minha intuição, mas tendo que lidar com uma realidade de que ela às vezes vai mesmo errar. Sem deixar de interpretar o sinal por trás de cada situação, neste caso de olhar só em frente. E transbordou uma aguinha salgada dos meus olhos puxados marrons. E eu assentei em um banquinho do parque da universidade para escrever, para me refazer, me reconstruir, para organizar. Para dizer a mim mesma quem  coordena quem aqui nesta briga da razão com o coração.

Mas a gente se desentendeu, eu e as palavras. Eu sentia em francês e pensava em português, ou o contrário. Eu sentia em português e pensava em francês. Eram milhares de mistérios e virginidades rompidos, violados, se revelando sobre meus olhos. Eu queria aprender a vida em palavras nesta outra língua, mas ali naquela mistura, percebi que eu não estou pronta para abrir mão do passaporte sem visto que as palavras em português representam; para passagem só de ida para um universo infinito que eu acessei através da língua mais viva que eu já conheci, a minha própria e às vezes mesmo inventada.

Eu dobrei o texto dolorido, quase em mosaico, com mil pedaços desordenados de mim. Peguei minha mochila largada no chão e vim rápido para casa. Entrei correndo no meu quarto. Peguei meus dois livros nos braços, fiz as pazes com eles e respondi a pergunta de sempre com um: “Até aqui”. “Shantaram” voltou para mesa, não sei de fato se poderemos nos reconciliar definitivamente. Fiquei com “A menina quebrada”. E ele já está ao meu lado esperando que eu acabe de escrever pronto para ser lido.

Mas com toda poesia, possibilidade e vida que eu sinto nas duas línguas da minha história, eu entendi olhando para este papel dobrado ao meu lado que o sentimento não precisa de tradução. O destino dos sentimentos não são as palavras, são as pessoas. Quando elas estão prontas para receber, então, tradução feita. Quando não, é como falar em mandarim para um alemão.  O que define o que eu sinto não são, então, as palavras. A ordem não é esta. É o que eu sinto que define o que eu escrevo. Em português, em francês, como for. E eu não vou terminar fazendo nenhuma rima óbvia de amor.

quarta-feira, 25 de junho de 2014

O sétimo cartão postal.



Acabei de escrever seu sétimo cartão postal. Eu o segurei nas mãos, reli, suspirei, apertei contra meu peito e guardei na minha caixa de cartões postais não enviados. Sim, eu tenho uma caixa só para guardar cartões postais não enviados. Tá, na verdade é uma caixa só para guardar os cartões postais não enviados para você. As outras pessoas tiveram o direito de receber seus cartões postais, ou eu diria até que eu tive o direito de enviá-los.

Parecia legal a ideia quando foi pensada sabia? Um cartão por mês, na sua caixa de correio. Um amigo bom guardador de segredos teria me dado seu endereço novo. Os cartão chegariam todo mês, até o último, quando só então tudo ali escrito faria exatamente sentido. Ou, talvez, finalmente não faria mais.

Eu sei, pelas suas contas eu estaria no sexto, então. Ainda é junho. É mas só que o que eu penso nem sempre acompanha o que eu sinto. Eu pensei em escrever um por mês, mas quem determina isso não é minha cabeça, é o coração. O sétimo veio antes da hora. E talvez isso também teria sido legal. Mudar as minhas próximas regras. Dois cartões em um mesmo mês. Talvez um mês sem cartões.
  
Parecia legal quando eu pensei. Mas eu pensei isso quando você ainda era meu quase amor. É, não, acho que eu não te amei. Mas foi quase. Quase, do verbo poderia ter sido, fiquei muito próximo de, se isso não é amor o que mais pode ser. É, meu quase mais real. Meu talvez com mais pelinhos arrepiados, com mais frios na barriga, com mais tensão no menor espaço de tempo e com maior número de coisas imaginadas não realizadas. 

Sabe que quando eu pensei nesta coisa dos cartões eu tinha medo de ficar pelo caminho? De não chegar ao 18º ou 22º ou aquele que seria o último? A ideia parecia tão legal. Mas eu não sabia até onde ia. Sempre me perguntei quanto tempo um quase amor demora para passar. Quanto tempo a gente leva para esquecer o que ainda não aconteceu. 

Já te falei de quanto eu odeio o quase? De quando eu odeio estar errada? De quanto eu me sinto traída quando minha intuição me engana? Tenho a sensação de já ter te falado, talvez em alguma carta, talvez em alguma noite nublada, talvez em algum dos cartões postais que eu guardei na minha caixa de cartões postais não enviados.

Parecia legal quando eu pensei. Mas isso porque você ainda era meu quase. Depois você virou meu não. E eu não tive coragem de abandonar a ideia, porque parecia legal. Porque eu tenho o direito sobre ela. Porque o que eu sinto me pertence. E porque agora eu tenho uma caixa de cartões postais não enviados e eu não sei o que eu faço com ela, mas ainda não tive coragem de jogar no lixo.


Parecia legal quando foi pensado. O último cartão teria sido entregue pessoalmente. Eu estaria parada na frente daquela varanda grande. Talvez ainda ia ter as malas nas mãos para você saber que aquilo passou estes anos esperando para acontecer. Talvez eu estaria de boina para dar um ar parisiense à cena. E talvez eu colocasse uma música para tocar porque você já estragou algumas músicas que eu amava e aquela seria a chance de corrigir isso. Talvez eu fizesse uma ligação surpresa e quando você saísse eu ia jogar minhas coisas no chão e te abraçar. E talvez desta vez não ia estar chovendo. E talvez o cartão caísse junto e ia voar por ali. Mas talvez isso não faria mais diferença porque...porque não faria. E talvez a partir dali você não seria mais meu talvez.


Parecia legal quando foi pensado. Parecia bem legal.

terça-feira, 29 de abril de 2014

E minha cor preferida é azul.

 

Quando a gente decide mudar de cidade pensa muito e por muitas vezes naquilo que está deixando para trás, mas não sabe de fato o que é. Ficam ali nos meses que antecedem a data do embarque aquela sensação de que aquelas pessoas, aqueles lugares, aqueles cheiros são seu mundo.  Um mundo que te pertence, ou pelo menos é o que a gente acha. Nesses meses antecedentes, cada vez que se encontra alguém que compõem a sua história o coração aperta e a vida fica em câmera lenta. Até que chegam os momentos de despedida.
E vem o dia da despedida oficial... E ali é como se você estivesse oferecendo a todas as pessoas que te amam a oportunidade de te ver pela última vez nos próximos anos. Só que no fundo é tudo ao contrário. No fundo quem quer se despedir é só você mesmo. No fundo é no dia da despedida, no último dia, que você começa a perceber que cada um vive por si. Que a vida é um contra todos. Que uma lista de gente que você espera chegar para te dar um último abraço estava ocupada demais em compromissos inadiáveis como ir assistir a um show sertanejo em um evento que se repete igual todo fim de semana, ir ver um filme no cinema com alguém que te enrolou a semana inteira, ou assistir a vida fantástica do sofá de casa.

Seu mundo está dando a partida para qualquer lugar. Mas isso só é importante para você, entende? É o seu mundo que vai mudar de lugar e não o de todas aquelas pessoas que você até aqui acredita que o compunham. A verdade é que pouca gente se importa realmente e isso muda em verdade a vida de quase ninguém, a não ser a sua própria. Ali sim você recebe um amor intenso de quem não faltou a esta pré partida, mesmo tendo outras coisas a fazer. E ali você ainda não sabe, mas provavelmente são estas mesmas pessoas que vão de fato sentir sua falta. Ou mesmo nem tantas, ou nem todas.
Ali, começa a ficar claro que a única vida que é diferente sem sua presença é a sua própria; e só.

Eu sou aquele tipo de pessoa que sempre se perguntou o que ficaria quando eu me fosse. Sempre quis escolher minha foto preferida, e uns dizeres especiais que mudassem a vida das pessoas, e correspondessem a qualquer coisa em que eu realmente acreditasse. Sempre fui do tipo de pessoa que queria dizer a tempo como gostaria que fosse minha despedida e que roupa eu gostaria de usar. Parece estranho, mas não é. É o contrário, eu queria só ter um pouco de vida, ser um pouco eu, sempre.
Eu tenho uma relação diferente com a morte, porque não acho que é a toa que ela foi eleita como a única certeza que podemos ter na vida. A morte é democrática, é para todos. Não pode ser planejada, não tem glamour. E é o momento em que você se torna mais que as coisas momentâneas que nos rodeiam pela vida afora. Você deixa de ser a roupa que você usa, você deixa de ser os lugares que frequenta, você deixa de ser o número de zeros da sua conta bancária, ou o carro que você escolheu.  

E aí, o que isso tem a ver com a história? E aí que mudar de país é morrer um pouco. Às vezes é morrer muito. Às vezes é morrer para sempre. Você vai. Faz as malas e vai. E tudo aquilo ali que você deixa para trás é antes muito menos do que parece. Passa a dar para entender porque começar a viajar se torna quase um caminho sem volta. Fica claro, muito claro que na verdade ninguém tem exatamente para onde voltar. Fica claro, muito claro que ninguém pertence realmente a qualquer lugar ou talvez seja até melhor dizer que nenhum lugar nos pertence.

E a vida que a gente deixa? Seu melhor amigo está ocupado com uma nova paixão. Suas amigas estão ocupadas com o trabalho. Outras com o noivado. Tem mesmo quem não esteja preocupado com nada em especial, mas cada um se preocupa primeiro com sua própria vida. E ser uma impossibilidade não te torna o centro de nada. Daqui, eu encho mais de uma mão de pessoas, e isso é sim muita coisa, que estão ali, lutando contra o fuso horário, contra o tempo correndo ao contrário, contra as ondas do oceano que nos separam. Me lembrarei sempre daqueles que se contentam com muito menos de mim do que mereceriam receber, tudo em nome de um sorriso meu, de uma foto, um áudio, um conselho enviado do silêncio das noites parisienses que chegam antes do que as brasileiras. Tudo, mesmo a tantos quilômetros de distância parecendo dar qualquer sentido para alguma coisa maior.
Não, deixar a vida para trás não é muita coisa. Não resta tanta coisa assim do que a gente acha que tem. A nossa própria vida não nos pertence. E parece que a vida que a gente deixa para trás é pequenininha. Que o amor que você gritou tantas vezes sentir por tantas pessoas pode ser substituído por coisas que daqui parecem menores, bem menores.
E lá do outro lado? O que acontece? Ah... A gente chega. Desfaz as malas. Está lá. A vida que você trás. E esta sim parece bem maior. É a vida que te pertence. Seu mundo se transforma todos os dias. Você conhece todos os dias pessoas que gostam de você só de te olhar. Porque você sorri diferente. Porque você veio de um país onde em tese as pessoas são a maior riqueza. Você conhece todos os dias pessoas que não querem saber seu endereço, seu passado, seus bons e mau feitos. Você conhece todos os dias pessoas que não se interessam pela marca da sua roupa ou da sua maquiagem. Você conhece todos os dias pessoas que só querem saber o que você vai fazer naquela tarde. E que te adoram porque você tem um sorriso solto. Porque você encosta ao falar. Porque seu olhar tem alguma coisa a dizer. Porque a maçã do seu rosto combina com seus olhos. E sim, este poderia ser um parágrafo entre aspas para repetir com o que de tão mágico nos deparamos na vida que vem com a gente.
Você conhece pessoas para quem diz as mesmas coisas que dizia no seu velho mundo, mas agora o que você diz faz muito sentido e você não parece mais estar dizendo nada estranho ou louco.  E você conhece homens que te beijam sem pedir. E outros que perguntam antes mesmo de te dar as mãos. Ou com aqueles que não tem beijam porque te acham incrível demais para estragar tudo logo com um beijo qualquer. Você conhece homens, e mulheres, claro, para quem você realmente faz diferença, mesmo que por quinze minutos, um dia ou um mês. Mas você muda a vida destas pessoas. Você tem para as pessoas o tamanho do mundo delas. Você conhece pessoas de um mundo inteiro. Um mundo muito maior que o seu. Você conhece gente que te acha diferente. E te adora assim, do seu jeito. Mesmo que você não tenha nada a oferecer.

Aí, na última sexta-feira das suas férias, você passa o dia inteiro trocando áudios com um mineiro que ri com o olho apertado, que te lembra que ainda prefere trocar 153 áudios com você, mesmo sem cheiro, sem gosto e com um oceano inteiro entre vocês, do que passar horas olhando para quaisquer janelas em forma de olhos que não tem tanta coisa ou nada a dizer. E aí você entende que aquele cara, junto com o repertório das últimas vozes brasileiras que você ouviu, faz parte do tipo de pessoa que você teria o prazer de conhecer aqui. Neste lugar onde você realmente está e talvez pela primeira vez: a vida.


Está ali, na sua frente. O mundo. O mundo que acontece em qualquer lugar, do seu tamanho exato: infinito. Parece um pouco triste perceber tudo isso. Perceber que sem nós, nossa vida não existe mais. Mas no fundo é uma boa resposta para tanta perguntas. No fundo é a vida fazendo sentido. É a vida dizendo que você não esteve tão enganado assim. Que sua vida acontece em qualquer lugar e você é o protagonista, o autor principal da sua próxima história. O resto são momentos, o resto é o que nunca existiu. O resto é o que a gente inventa. E como o amor, a gente faz só para se distrair.

No fim das contas o mundo te mostra que a gente deixa muito pouca coisa para trás. Que a vida vem na mala. Que o que vem, tem preço de ouro. Que só carregando sua vida por onde você vai, é possível saber quem de fato nos pertence. E que a vida é uma grande surpresa todos os dias, já que o que é seu de verdade não é você quem sabe.

Triste? Libertador. Duro? Leve. Pesado? Asas, para voar. Para o tipo de lugar onde a gente consiga sentir que realmente deva estar. A
gente muda, sabe?

Saber se observar em movimento é um dom. E eu, que transformo o post para primeira pessoa perto da hora de acabar, nem sei mais se  tenho os mesmos gostos; as mesmas eternas paixões. Eu nem sei mais se gosto das mesmas baladas, dos meus restaurantes. Não sei se minha comida preferida ainda é a mesma. Eu não sei nem se gosto das mesmas pessoas. Eu sei sim, que agora frequento lugares preferidos que não sei nem o nome, nem o endereço, que me apaixono em um segundos por pessoas que eu deixo ir no segundo seguinte
e que minha cor preferida para- sempre-enquanto-for é azul. Da cor do céu ou do mar.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Para falar de saudade.


Como uma palavra que só existe no dicionário pode ter tantos significados? Como é que tantos outros povos conseguem explicar o que sentem sem esta palavrinha cheia de mistérios que faz parte da nossa vida desde tão cedo? E, nossa, como é difícil explicar em francês ou inglês com as minhas restrições que “tu me manques” ou “i miss you” é muito diferente de “eu sinto saudade, eu sinto muita saudade”. 

Saudade

Somos ainda tão pequenos quando a saudade bate na porta da vida. Quando no primeiro dia de aula nossos pais nos entregam nossa mochila, nossa lancheira, nos dão um beijo na testa e se despedem. Depois na escolinha quando o coleguinha mais velho rouba seu lugar na fila ou seu lápis colorido, quando você cai e se machuca ou é dia de vacinação. Mais uns anos e dormindo na casa de algum coleguinha ou de alguma tia, quando a gente acorda com algum sonho ruim de madrugada. Acho que são por aí nossas primeiras saudades, do colo dos nossos pais, das mãos dadas ou da sombra deles na porta do quarto, tudo nos dizendo que  tudo vai ficar bem. 


A vida vai adiante, seguimos por aí e deixamos amigos para trás, ou amigos nos deixam, mudamos de escola, de bairro, de gostos, entramos na faculdade, saímos dela, deixamos o estágio, o emprego, mudamos de turma, de namorado, de cidade. E de repente o que era, para de ser. E de novo vem ela.

Saudade.

Depois, normalmente, são eles, os anjos peludinhos que a gente cresce aprendendo a amar. Mas algo foi mal calculado nesta história e eles se vão sempre antes de nós. Deixam normalmente a lembrança de doces olhares, amores incondicionais e a festinha que eles fazem todos os dias quando a gente volta para casa, faça chuva ou sol. Lilicos, Thors, Fredericos Augustos, Pandoras, Blacks, BJ’s, passam pela nossa vida. E um dia qualquer, após ouvir uma desculpa esfarrapada de nossos pais tão inconsoláveis quanto nós ou de ouvir que há um céu dos bichinhos, sem nem ter ideia do que isso quereria dizer, eles nunca mais estão lá. E lá vem ela outra vez.

Saudade.
Então, dois infartos, a carona com o motorista errado, um tiro vindo do namorado, um acidente sem qualquer causa aparente acontecem e a saudade ganha sua forma mais cruel. A morte. A saudade que vem com a morte trucida, espatifa, rompe. É a saudade que faz sentir antes da hora. Uma saudade antecipada, que explode porque sabe o que ainda vai vir, ou melhor dizendo, o que não vai vir. A morte é um fim. Uma transparência. Um invisível, um não tocar. Com a notícia de uma morte, de um nunca mais, a gente sente instantaneamente toda a dor equivalente a uma vida inteira de ausência que está só começando ali. Se a medida da saudade fosse em calorias a saudade que vem com a notícia da morte seria algo como o waffle com duas bolas de sorvete, calda quente, chantilly e nutella do Alessa. Em um segundo está lá, a dor aguda de uma saudade que ainda nem chegou; em um segundo vamos ao 163º andar do Burj Khalifa e despencamos ao primeiro, sem cinto de segurança, sem anúncio ou amortecedor.

Até aqui esta é a saudade que eu melhor conhecia, ou a saudade que eu pior conhecia. A saudade do que eu não ia mais ter. Sem desmerecer as outras mortes que cruzaram meu caminho, cada uma com um gosto, sem qualquer dúvida a perda da minha vida foi meu irmão. Foi ali que eu aprendi que o que ficava pra trás era a lembrança e não a saudade. Que a saudade é o que vem adiante, e começa ali no exato segundo que sucede à notícia de uma morte. A saudade dura e cruel do que a gente não pode mais viver. A saudade dos meus filhos sem tio. A saudade da não-carona para festa ou para academia. A saudade do não-brinde no não-casamento dele. Ou do não-discurso dele no meu, se eu casar. A saudade da não-foto de família completa. A saudade é do futuro que está ali, pronto para acontecer, mas não vai.

E era esta a saudade que eu melhor conhecia. Era sobre isso que eu poderia desenvolver uma tese de doutorado e é esta a saudade que mudou a minha vida e me fez ser e poder ser exatamente a pessoa que eu sou, sem superfícies, sem lógica, sem apegos conceituais. Foi esta a saudade que me permitiu ser o tipo de pessoa que eu gostaria de conhecer. Que acendeu a luz na minha alma para dizer que a vida termina sem aviso, que eu não queria uma existência comum e que eu precisava fazer esta coisa de viver de um jeito diferente, mas do meu jeito.

Aí eu resolvi fazer as malas. E mesmo que elas fossem três e enormes, nunca tive uma sensação tão evidente de ter vindo deixando absolutamente tudo para trás. E acho mesmo que deixei, porque o essencial não cabe nem em todas as malas do mundo. Hoje, são exatos cinquenta e sete dias da minha partida. E eu volto a mencionar o dicionário apenas para lembrar que a mesma palavra que se usa para falar do ato de partir, de ir embora; se usa para tratar do ponto de início, onde tudo começa e não deve ser por acaso. A partida.

E dentre todas as coisas, dentro todos os posts escritos com a vista do Rio Sena ou de alguma cafeteria charmosa desta cidade mágica, minha vida aqui me apresentou uma outra saudade. Agora, não mais antecipada, não a que se sente antes do tempo, como a que eu senti quando vi meus pais pelo vidro pela última vez antes de vir. A saudade de agora, vem chegando devagarzinho, coerente, acompanhando o tempo, crescendo aos poucos e ativada pelas mais inesperadas situações.

Cada vez que encontro no meio das minhas coisas algum item que eu não tinha conseguido colocar na mala, sei que minha mãe leu minhas vontades e deu um jeito de encaixar aquilo ali. Nesta hora, a saudade dos seus cuidados se instala por aqui. Quando tenho que ser forte para fazer sozinha algo, mesmo querendo pedir ajuda, sinto saudade da atenção contínua do meu pai me fazendo de bonequinha-do-papai e do orgulho que ele teria de me ver me virando. Quando chega a sexta-feira e passo pelo supermercado antes de ir para casa, os vinhos me matam de saudade das noites no quintal com os dois. Cada vez que alguma nova amiga me olha com carinho ou me pede um conselho sinto saudades imensas das minhas companheiras de uma vida inteira. Cada vez que algum novo amigo ri alto de alguma coisa sem sentido que eu falo, meu coração se parte em dez de saudade da risada dos meus bons amigos homens. Cada vez que algum homem se aproxima com admiração e diz que as brasileiras devem ser as melhores mulheres do mundo para se casar, eu lembro do cara que me amou o amor maior que eu já vi no mundo. Cada vez que meu skype abre sozinho no meu computador, eu imagino meu irmão do outro lado do mundo me chamando de marmota e dizendo que está morrendo de saudade, mesmo sabendo que isso não pode acontecer.

A saudade que eu aprendo aqui é nova e é diferente a cada dia. É uma saudade distante por quatro horas do fuso horário ou dez de distância. É uma saudade que chega a qualquer hora e tem impulso nas mais diversas coisas, mas que não serve de desculpa para interromper nada que eu esteja fazendo. É uma saudade que não espera para acontecer, mas tantas vezes tem que esperar para ser cuidada. É uma saudade do que está sendo; a saudade da vida que está acontecendo ao mesmo tempo que a vida que eu vivo aqui, mas sem mim. Minhas renúncias, meu não estar. Só eu sei como pensei nisso ao fazer as malas e vir sem olhar para trás.

Mas escolha feita, eu acho que posso dizer que o maior sinal de que ela foi acertada, é que mesmo com toda esta saudade, quando eu chorei aqui, pode até ter sido de saudade, mas foi, primeiro, de felicidade. E ser feliz é o único compensador que faz valer toda saudade que a gente tem que sentir pela vida afora.

S
audade.

Em dias 23 de fevereiro, sempre especialmente. Mas sempre saudades. Dele. De você. E da história inteira que está acontecendo em uma vida que já me pertenceu, mas não me pertence agora. O que sobreviver ao tempo, provavelmente, eternizado estará. E qualquer hora eu volto, ou não, porque eu não sou daqui, eu não sou daí, ou não sou de lá. Eu sou de viver e só, aqui ou em qualquer lugar.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Um pouquinho, só mais um pouquinho.


A história nem é recente. Já acontece no mundo desde os primórdios da humanidade. É mais ou menos o tal do disse-me-disse. Faz um tempinho e uma mocinha que eu não conheço, com quem não tenho amigos em comum e com quem nunca troquei uma única palavra resolveu sem ser consultada dar a alguém muito próximo de mim seu depoimento a meu respeito.

É, esta estranha desconhecida de nome esquisito, quis dar uma opinião pessoal ao meu respeito para uma pessoa com quem convivo há cerca de oito anos, quase um terço da minha inteira existência. Sem ser perguntada, ela quis opinar e opinou. Um depoimento pessoal e de natureza, a meu ver, negativa.

E por razões muito óbvias é claro que alguém que eu não conheço, que nunca olhou nos meus olhos, com quem nunca troquei nenhuma palavra, não merecia um post no meu blog, mas cá entre nós, aqui também tem espaço para as porcarias da humanidade e eu não posso querer viver sempre no mundo que eu inventei, sob pena de meu mundo inventado ser de mentira, e não é. Até nas histórias mais lindas, temos os vilões, a madrasta, o lobo-mau, então, não seria diferente aqui.

O depoimento da mocinha tinha conteúdo irrelevante, mas me remeteu a uma velha história. Me remeteu a minha já distante adolescência, quando conheci, - e acho que é quando de fato a maioria de nós conhece, - os seres humanos na sua pior versão. É o momento triste quando temos que deixar a ingenuidade de lado e entender que pela vida afora tem gente que vai ser ruim, apenas pelo prazer de ser, ou vai te fazer coisas ruins apenas pelo prazer de fazer.

A gente conhece a maldade, mas então o tempo passa e percebemos que aqueles seres tinham uma desculpa. Eram adolescentes, sem muito o que fazer, tendo seu primeiro contato com o pior que existe em si, testando sua habilidade de fazer mal a outro alguém, meio inconsequentes, sem muita capacidade de entender os efeitos disso para o outro. Depois que a gente cresce, a desculpa acaba. Quem é ruim, é ruim e pronto. Agora, sem desculpas.

Mas foi lá atrás, ainda menina, ainda com um pouco da ingenuidade que a vida não tinha levado inteira, que uma lição veio a tona para nunca mais ser esquecida: não interessa quanto bem você faz a quem está a sua volta, não interessa, porque na vida, definitivamente, a gente não colhe só o que planta. Não mesmo. Não interessa quanto você se esforce, alguém sempre vai ter algum motivo obscuro para não querer tanto seu bem assim, não interessa quanto esforço você coloque nesta coisa de viver.

Agora, no auge dos meus vinte e oito anos e lidando, à princípio, com pessoas com grau intelectual similar ao meu, ainda me surpreendo com algumas coisas. Para mim, ainda é curioso como as pessoas são bobas, como se preocupam com o que é pequeno demais, com o que não soma pontos na hora de acertar as contas no final. Ainda é curioso como as pessoas são irresponsáveis. Mas no meu mundo este tipo de pessoa se torna invisível.

Eu escolhi a forma como eu ia viver ainda muito jovem. Quando eu ainda não conseguia racionalizar minha escolha, mas escolhi, meio por intuição como eu ia me relacionar com o outro, com os outros, com os seres humanos (ou nem tão humanos assim) à  minha volta. E escolhi.

Para ganhar o coração de alguém não tive nunca que ser nada além de real. Nunca tive que ser nada além do que eu realmente sou para ser amada. E ser real representa ter uma história, um passado, uma trajetória, ter cometido erros e acertos, repetir alguns erros e não ter vergonha deles, que passam a nos conduzir para mais perto da excelência. Nos conduzem a um lugar onde o mínimo de desacertos são cometidos e nossas escolhas são motivadas pelas razões corretas.

A minha história vem nos meus ombros. Sou mulher, sou moleca, sou responsável. Sou princesa de rua, tenho pé no chão e asa nas costas, faço o que me dá na telha. Sou menina, filha orgulhosa, amiga leal, apaixonada por mim mesma, pela vida e por tudo que tem peso de pluma.

Mas assumi conscientemente as consequências das minhas atitudes por toda minha vida.

Aceitar que não existe a tal lei da compensação é difícil. Em tese se faço o bem, se digo o bem, se sinto o bem, era para eu receber tudo de volta. Era, mas se fosse assim tão fácil, não era vida, era morto, era morte. No caminho muitas vezes a gente recebe o que não encomendou, na caixa de correio aparece embrulho cheio daquilo que não mandamos trazer.

Mas cada um escolhe o jeito de fazer sua própria vida. E eu escolhi. Escolhi não desqualificar ninguém para tentar me qualificar. Escolhi não plantar maldades para tentar tornar piores histórias que eram melhores que as minhas. Escolhi não atacar quem eu não conheço e quem nunca me fez nada (e descobri que quem faz isso quer tirar o foco de si mesmo). Escolhi nunca entrar na vida de ninguém tentando ocupar o espaço que já foi de outra pessoa, mas sempre pretendendo um novo, só meu, com minha cara, meu formato e meu cheiro.

E, então, entendi que não importa como eu viva, algumas pessoas simplesmente vão escolher viver do pior jeito, distribuindo o que tem de ruim em si. Todos somos uma mistura de bom e ruim, mas escolher o que você transmite ao outro é opção de cada um. Eu fui muito mais honestamente gostada quando deixei de ser um personagem para agradar os outros e passei a fazer minhas escolhas para agradar primeiro a mim . Tive que desistir da unanimidade para isso, porque nem sempre dá para agradar a todos fazendo assim.

Mas o contrário também aconteceu. Se o bem que eu me propus a fazer era pensado para mim, o mesmo aconteceu com o mal. Daí em diante tudo que eu fiz na minha vida afetou em um primeiro momento quase que exclusivamente só a mim. Os frutos do bem e do mal foram colhidos um a um e destinados aquilo que se propuseram: a me tornar uma pessoa mais leve ou a me tornar uma pessoa melhor, ora pelo acerto, ora pelo erro.

Só fui honestamente gostada quando fui eu mesma e quando qualidades e defeitos, efeitos e defeitos que eu não tenho medo de mostrar foram capazes de ocupar os sonhos de alguma alma distraída, que me enxergou do jeito que eu sou e gostou do que viu.

Hoje eu vim escrever para lembrar a mim mesma que não interessa o que venha, pessoas invisíveis não tiram minha esperança em torno das pessoas que posso enxergar. Talvez quando passarem a parar de gastar tanta energia com algo que não trás nenhum retorno afetivo, então vão entender que se de um lado, às vezes coisas ruins aconteçam para pessoas boas, o contrário é mais coerente, porque toda maldade será no devido tempo castigada.

Felicidade incomoda, eu sei. Mas nunca vou esconder a minha por gente que eu nem posso enxergar. Sou um colete a prova de balas, não posso ser atravessada, mas apesar disso, me arranho. E todo arranhão, toda cicatriz fica aqui, me lembrando de reafirmar o compromisso que eu fiz com o meu caminho, de distribuir meu melhor, de modelar minha versão original e de mostrar sempre a versão mais real de mim mesma, porque para mim só faz sentido ser gostada assim.

É clichê, mas é verdade, se quiser ainda assim falar de mim, me chame, sei coisas terríveis a meu próprio respeito.

Mais amor, é só o que eu desejo, mais amor, por favor. Um pouquinho, só mais um pouquinho. A educação é para quem recebeu, mas ficar calado é uma opção democrática e serve para qualquer um. O que vier de ruim para mim, o que esmagar meu coração por até três segundos, eu devolvo em dobro, em forma de sorriso fácil, cartão postal ou borboletas. 


sábado, 1 de fevereiro de 2014

Não é só por um beijo gay.


Dia destes e em um momento familiar em uma noite comum na Paris de todo dia, estávamos eu e o casal com que eu moro, (que cumpre para mim o papel ora de irmãos, ora de primos, ora de amigos, ora de pais) assentadinhos na sala, cada um ocupado de uma outra tarefa, como um livro, um tablet ou computador.


Distraídos como estávamos, um casal se beijava ali na TV, calorosa e apaixonadamente. Na vida real, cada um continuava se ocupando com o que estava fazendo. A cena era de “Plus Belle la Vie”, a tradicional novela francesa, que está no ar há cerca de dez anos e passa em torno das oito da noite, no horário daqui, claro. Ah, o beijo era entre duas mulheres.

E acreditem, a vida continuou. Ninguém parou para debater o beijo, aliás, o milionésimo beijo gay da novela. Acabou o capítulo daquela noite e mudamos para novela brasileira. Ali, a curtos (mas nem por isso não importantes) passos para uma sociedade engessada como a brasileira, o autor tenta incluir algumas relações homossexuais, para dar um ar de vida comum (é, foi o tempo em que o que se pretendia era polemizar, agora o que se quer é apenas retratar a vida de todo dia). Mas no Brasil os passos ainda são curtos demais. Um beijo homossexual nas telas brasileiras ainda parece uma utopia (ou parecia até o momento em que o post chegar ao final). 

Há quase vinte anos estamos tentando. E as desculpas usadas para evitá-lo são ridículas (na falta de uma palavra melhor, só consegui esta). A mais frequente e nem por isso menos horrível costuma ser o “mau exemplo”, - (tive uma pequena convulsão) - , principalmente para as crianças”. A quem se quer enganar? É segredo para alguém que as crianças, como os animais, nascem naturais, sem preconceitos, sem amarras e lidam com sua própria natureza muito melhor do que adultos. Crianças não se chocam com desejos, com vontades. Só sentem. Só querem. Só intuem. Puramente e lindamente. Os incomodados, contaminados, preconceituosos e atrasados são os adultos. E como são.  

Mas, ah, o exemplo!!!!!!!! É, também acho um péssimo exemplo  um beijo de língua bem gay na novela, entre o casal mais honestamente apaixonado ali, com suas diferenças e defeitos (Felix dá-vontade-de-ser-melhor-amiga-dele e Nico fofuxinho dá-vontade-de-apertar-e-colocar-no-colo). É, os outros têm razão, não não, beijos entre homens não. Acho mesmo que deveríamos incentivar mais os outros ótimos exemplos que são dados nesta novela linda. Como jogar crianças em caçambas, roubar o bebê de outro casal, casar por interesse, roubar todo o dinheiro do marido que você envenenou até ficar cego, deixar seu bebê desnutrido enquanto você tenta matar o mesmo marido cego, o amante, enterra a tia no jardim, amarra a médica no quintal e derruba uma velhinha manca. Ah, o exemplo! Nossas novelas brasileiras que inspiram nossas crianças a serem melhores. Realmente beijos gays, bem gays, cheios de purpurina ou não, com sexo depois ou não, com tudo aquilo que se tem direito são um péssimo exemplo. #ironia.

Não consigo achar normal e não querer gritar. Não consigo entender quem não consegue enxergar do que estamos tratando aqui. Pelo AMOR à vida (e não foi um trocadilho como nome da novela, mas só não pedi pelo AMOR de Deus, porque ele não tem absolutamente nada a ver com isso)! Como pode? Mas é isso. Enquanto não formos, junto com outras sociedades super evoluídas como o Paquistão ou a Nigéria, #ironiadenovo, capazes de lidar com o outro, diferente ou não, da mesma cor, com os mesmos desejos, com os mesmos valores, ou não, seremos uma sociedade assim, que me envergonha. E o “assim” mereceria outros tantos posts. 


Honestamente? Na falta de outro sentimento melhor, tenho é pena de quem tem medo de homossexualidade, de que tem medo da manifestação livre de desejos. Tenho pena de nós, que não conseguimos ensinar às nossas crianças a serem felizes sendo o melhor do que são. Tenho pena mesmo, quase compaixão (quando não é raiva), de uma sociedade que prefere fingir que certas coisas não são como são, ao invés de permitir a si mesma o exercício bonito e livre de algo que nasce com cada um e é produzido antes mesmo do amor, que é o desejo.

Somos todos nós, seres humanos, uma sucessão de desejos e sentimentos, que reprimidos geram crianças e adultos da geração “psiquiatria”, que compra a felicidade embalada nas farmácias, que não consegue seautoconhecer, se autoentender, se autoaceitar. 


Antes de eu vir para França, muitas pessoas me disseram que talvez eu não voltasse nunca, e isso é assunto para um outro post. Mas posso dizer com certeza de quem tem o coração disparado muitas vezes ao dia, que aqui sinto por muito mais vezes que meu mundo inventado existe de outras formas na realidade. Ser e deixar ser, viver e deixar viver, amar e deixar amar. Porque na rua, na chuva, na fazenda ou em uma casinha de sapê, aqui o que está na moda ser exatamente aquilo que se é. 

Eu, sigo de dedos cruzados, para que antes do que eu desejo os moralistas (e eu nunca achei que uma palavra fosse tão mal usado como “moral”) possam assistir a muitos beijos de amor entre dois homens, um homem e uma mulher, duas mulheres. Porque é disso que as pessoas precisam, de amor e liberdade, caminhando juntos, para que não hajam desejos reprimidos, mal vividos, encubados, estes sim, responsáveis por boa parte daquilo de ruim que se vê por ai.

Torne as pessoas livres e felizes e elas vão entender aonde querem ir. Tire de uma criança a possibilidade de achar que o desejo dela mora no coleguinha do mesmo sexo e não na do sexo oposto, tire de uma menininha a possibilidade de brincar com o carrinho e não com a boneca, tire das crianças a beleza de reagir naturalmente àquilo que o corpo delas pede e crie, então, um adulto que vai ter que passar a vida tentando curar os males que a humanidade lhe causou, sem talvez nunca conseguir.


Hoje, quando acordei, vi nas minhas redes sociais uma multidão gritando em uma só voz: "até que enfim!". E até que enfim mesmo alguém acordou e colocou dois homens apaixonados se beijando na novela. Senti um alívio. Uma alegria. Senti uma vontade de dar um grito. Depois fechei os olhos e torci para que os próximos beijos gays não precisem de mais vinte anos, de um último capítulo e de tanto alarde para acontecer. A próxima novela vem ai e eu espero que desde o primeiro capítulos tenham muitos beijos, paixões e cenas de amor em todas as suas formas.

O silêncio de quem eventualmente não tenha gostado me dá uma luzinha de esperança, de que a partir de agora mais do que antes quem tenha que viver enrustido e reprimido, com vergonha de ser como é, sejam as pessoas que cheias de preconceitos ainda não conseguiram viver e aceitar bem o amor em todas as suas formas. Estarei completa quando assuntos como este não precisem de ser tornar um post.


Um viva a coisa mais linda do mundo que é a liberdade. Uma vaia para coisa mais triste do mundo que é o preconceito. E um dedo cruzado para toda forma de amor. 

Não, absolutamente, não é só por um beijo. 

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Amanheceu nublado.


Amanheceu nublado. E era segunda-feira. Devia haver uma regra como: segundas-feiras são expressamente proibidas de amanhecer cinzentas. Especialmente algumas. Especialmente aquela.

A história é nova, com cara de velha. A morena com sorriso fácil, cor de neve e olho apertado se permitiu outra vez. Tanto tempo depois. Ela é do tipo que se nega a iniciar qualquer romance sem ficção, músicas, flores ou cartas. É que ela acredita que todo casal tem que ter um lugar, uma música, um livro para chamar de seu, para quando tudo estiver indo por água abaixo haver onde se segurar ou se apoiar.

Desta vez a história-de-não-amor, nem chegou a virar verdade, nem foi antes batizada e isso é tudo de que ela pode ser chamada agora. Se é que houve algum lugar para dizer que era deles foi aquele bar com ares de fresco, mas bem calorento na rua dos bares da capital mineira. Foi lá que eles se conheceram, foi lá que a primeira intuição surgiu. E olhando agora, de fora, parece que foi tudo que eles foram. Uma intuição, uma hipótese, um anúncio, que podia virar verdade ou não. Mas distraída, como ela fica no começo de histórias assim, não percebeu que a intuição estava mais para um mau pressentimento.

E naquele domingo lá foi ela para a linha de partida, esquecendo que às vezes ela se confunde com a de chegada. E era para ser um domingo comum. Mas porque ela gosta de fazer histórias tristes virarem poesia, o destino às vezes dá um empurrão a mais. E foi por ali mesmo, onde tudo começou que tudo terminou também. E o dono daquelas janelas verdes pegou em outras mãos, olhou para outros olhos, entrou em outra vida e deixou a dela para trás. Ela se quebrou de novo. Tinha prometido a si mesma se proteger, mas não deu para ser. Confundiu o escudo com a espada e acertou a si mesma.

Ela ficou cega. Estava em paz, encontrada, estava de cabelos longos, segura, estava de blush rosa, esta convicta, estava de saia curta e estava feliz com a vida. Mas ficou cega, a visão embaçou. Ela se partiu. E quando já achava que nem tem mais idade para isso, nem tempo para isso, nem tanto assim de si para dar de graça. E por mais esta vez seus olhos se tornaram uma confissão. E um estranho qualquer enxergou algo diferente em seu olhar e quis saber o que era aquilo. Ela negou o número do seu celular e uma explicação. Ela não disse para aquele cara que tinha acabado de conhecer que era o brilho de quem acabou de perder, que só olhares de donos de corações partidos possuem.

E foi de dentro de mais um banheiro com a higiene comprometida de um lugar onde ela não pretende estar novamente, que ela ouviu de longe, em uma voz nem tão afinada, a ironia das coincidências cantada naquela música, explicando tão bem que algumas idéias não têm mesmo a menor pretensão de acontecer. 


Ela acordou e quis não sair da cama do quarto de hóspede da casa daquela que foi a sua companhia naquela madrugada sem cor. E se ela perdeu alguma coisa naquela noite, ganhou uma boa companheira de sonhos, idéias e sensações. Ela não queria levantar, mas teve. Sua vida estava acontecendo ali afora e ela tinha que voltar para lá. E voltou. Amanheceu nublado. E era segunda-feira.


Qualquer semelhança com a realidade
 pode não ser nada além de mera coincidência.
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