sexta-feira, 9 de março de 2018

Sobreviventes somos nós.




Eu conheci a Amanda no salão. Por acaso. Queria unhas novas, liguei na recepção e pedi “a melhor”. Me deram ela. E ela era mesmo a melhor. Amanda é aquelas mulheres completas. Amanda perdeu a mãe muito cedo e foi criada pelo pai. Ela tem mais ou menos a minha idade e uma filha adolescente com já mais ou menos a metade. Na filha tem a melhor amiga. No pai, o melhor. Amanda é linda, divertida, inteligente. Cuida da sua carreira, faz cursos, se especializa. Meio manicure, meio podóloga, meio enfermeira e inteira em tudo que ela faz.

A filha e o pai. Duas pessoas que eu só conheço pelos olhos e pelas palavras da própria Amanda. E como praticamente tudo que ela emite, a descrição deles é cheia de luz. Raíssa, a filha. Adolescente. 16 anos. Melhor amiga da mãe. Bem criada. Cheia dos valores, da doçura e da espontaneidade da Amanda. Responsável. Independente para a pouca idade. Seu João. Pai jovem. Pai que foi mãe e pai e que criou a Amanda (e a Raíssa) para serem mulheres que se bastam, prontas para o mundo. Os três formam uma família, um núcleozinho lindo de amor, morando juntos, se cuidando entre si em uma sincronia deliciosa de se ver.

 O pai, Seu João, sobreviveu ao câncer por duas vezes. Depois à dois infartos.

No fim do último ano, Seu João - o sobrevivente, descobriu uma pedra na vesícula. Mas o que é uma pedra na vesícula para um sobrevivente do câncer e do coração, não é mesmo? Só que esqueceram de avisar que há batalha maior que o câncer ou que veias obstruídas querendo fazer seu corpo parar de viver. O Sistema Único de Saúde.

A pedrinha na vesícula, que levou a fama de vilã só estava ali fazendo aquilo para o que ela tem mais aptidão: avisar que está lá.

-       Hey, vocês, me tirem daqui, que estou crescendo e não vou sair sozinha.

Simples, né? Não no SUS. E foi sob os cuidados do SUS que Amanda, Raíssa e Seu João foram e voltaram do hospital umas dezenas de vezes ao longo destes quatro meses. E a pedrinha foi virando pedrona. A dorzinha foi virando uma dor só controlada com morfina. A inflamaçãozinha foi virando uma infecção generalizada. As idas e vindas casa-hospital foram se tornando mais frequentes. A permanência no hospital se tornando cada vez mais longa. Mais tempo na fila. Mais tempo na triagem. Mais tempo internado. Mais tempo no corredor. Sim, dias (eu disse dias) em uma maca no corredor, esperando um quarto a ser compartilhado. No frio, no vento, ao lado da entrada do pronto-socorro. Sangue. Mortes. Acidentes. Dor. Choros.

Mas eles devem ser uma família de sorte. A Amanda tinha até mesmo uma cadeira para passar a noite. Que sortuda. Seu João tinha  até uma maca. Que sortudo. E Raíssa tinha Amanda, lhe poupando de passar a noite lá, porque ainda dá para tentar deixá-la acreditar por mais uns anos que o ser humano é digno de mais.

Eles continuaram tendo tanta sorte. Afinal de contas, Seu João arrumou um lugar em um quarto. Ele e mais uma turminha. Seu Silva cuidando das escaras que o tempo na cadeira de roda lhe causam. Felipe cuidando de uma infecção na traqueia originada em um dente inflamado. Pedro na mesma fila do Seu João, esperando para ser operado da pedra na vesícula. Mais um sobrevivente.

Seu João não parou de sorrir. Mas parou de comer. De conseguir se levantar. Foi ficando amuado. E agitado. Seu João foi entubado. Seu João piscou 15 vezes quando Amanda pediu para ele piscar uma, caso estivesse sentindo dor. Seu João piorou. Foi para o CTI. O lugar de seu João na fila chegou. Seu João pode finalmente ser operado. Da pedra da vesícula descoberta quatro meses antes. A pedrinha que avisou que tinha que sair dali, resolveu o problema por conta própria. E a cirurgia chegou tarde. Como não podia deixar de ser.

E Seu João, o sobrevivente não sobreviveu.  A nós, que aqui estamos resta a tentativa.

Afinal de contas, somos todos sobreviventes, cheios de sorte. Não é assim?

Eu não tenho nada contra o que certas pessoas têm. Eu não quero a vida de ninguém, nem o dinheiro de ninguém, nem a carreira de ninguém. Mas não posso deixar de pensar algo. Fico feliz que o Neymar possa vir de Paris, ocupar uma ala inteira de um hospital cheiroso, silencioso e limpo, chegar de helicóptero, comboio ou sei lá o que. Eu fico feliz que ele tenha tido os dedinhos, ou sei lá o que, consertados para poder continuar sua carreira. Eu gostaria apenas de entender porque isso importa, a quem quer que seja, mais do que o que o brasileiro precisa fazer para sobreviver.

A Amanda foi embora aqui de casa há uns minutos e eu assentei na minha cama e chorei. E eu não gosto de me manifestar no calor de nenhuma sensação. Mas quer saber. Foda-se. Só consigo pensar que enche o saco o fato de que a vida e os direitos de tantas milhares de pessoas sejam só estatísticas ignoradas.

Estatísticas invisíveis. Estatísticas cegas, surdas e mudas. Sem RG ou CPF. Sem endereço. Estatísticas indigentes. Enterradas sem serem veladas. Esquecidas sem serem registradas. Estatísticas que nem entram nas estatísticas, sabe. Porque quando alguém se refere ao péssimo serviço de saúde brasileiro, isso parece vir vazio de sentido, como se a gente não estivesse se referindo a pessoas que esperam o dia, o mês e a vida para não serem atendidas, que esperam doentes em cadeiras, macas, ou filas também invisíveis, para serem convocados por senhas que ninguém chama. E ninguém se importa.

Seu João faz parte da lista dos não sobreviventes.

Os sobreviventes somos nós. Sobreviventes são os 47% dos pacientes que aguardam em torno de seis meses para marcar uma consulta ou realizar um procedimento. Sobreviventes são os outros 29% dos pacientes que esperam períodos maiores de seis meses. Sobreviventes são os 24% que conseguem atendimento em menos de um mês. Sobrevivente seria o Seu João se este atendimento “imediato” para cirurgias de emergência não tivesse vindo quatro meses depois quando ele não podia mais sobreviver.


segunda-feira, 5 de março de 2018

Livre o suficiente. [Parte 1].



Espelho de Vênus. Feminino. O símbolo.

Ame.
Sorria. Ou chore.
Fale alto. Ou baixinho. Ou sussurre.
Gargalhe.
Use azul. Ou rosa. 
Use mini saia. Ou moletom.
Corte o cabelo. Ou tenha cabelos longos. Ou faça dreads.
Fale palavrões. Ou recite poesias.
Seja princesa. Ou super herói.
Brinque de bola. Ou de boneca.
Não tenha filhos. Ou tenha sete. 
Trabalhe. Para garantir o futuro. Ou para pagar por seus desejos.
Seja forte. E não se envergonhe de fraquejar.
Estude. Estude mais até entender quanto há a se aprender.
Tenha orgasmos. Ou seja virgem. 
Seja solteira. Se case. Ou se divorcie.
Viaje o mundo. E continue viajando. 
Perdoe os homens que te desrespeitaram ao longo da vida.
Fale bem de outras mulheres.

E no final, continue sendo livre o suficiente para fazer o que quiser.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

O carnaval que nunca acabou

23 de fevereiro. E eu ainda fico puta por você ter ido quando eu tinha 10 kgs a mais e o nariz maior e, portanto, nossas fotos não são tão "foda". Mas sobretudo ainda sinto vivamente a sensação do carnaval se aproximando. Meu corpo responde claramente à Globeleza na Tv, aos anúncios do carnaval de Salvador e às cores e sons dos blocos de rua. É uma mistura maluca de gatilhos que me lembram ora dos últimos dias em que eu vivi tendo você, ora dos primeiros segundos e dias que eu vivi depois de te perder. Mas eu sigo insistindo que sou melhor agora. Não há quebra não seguida de reconstrução, não há dor não seguida de maior compaixão, não há perda não seguida de maior gratidão. Meu mundo é diferente depois de ter perdido você. Meus carnavais também. Mas amo mais a vida, me preocupo bem menos com o futuro, aproveito os detalhes do percurso, sorrio muito, respeito o outro ao máximo, me coloco no lugar das pessoas, amo descontroladamente, não desisto de ser melhor. Endureci um pouco, enlouqueci um pouco, me permiti um infinito e vivi. E depois de tudo mesmo quando a última música do carnaval tocou, ele nunca mais acabou.

terça-feira, 22 de agosto de 2017

E se der medo...

O cara é foda, é o homem que toda mulher sonha em ter como melhor amigo, amante ou companheiro. Inteligente. Engraçado. Bonito. Vaidoso. O padre-celebridade é uma das poucas pessoas que não me deixa desconfortável ao falar de religião, que desmistifica comportamentos e padrões de uma igreja que parou no tempo (no MEU ponto de vista). Solidário. Bem-sucedido. Consciente. Humilde. Carrega uma responsabilidade infinita no que faz. E foi diagnosticado com síndrome do pânico.

Quando eu vi o Padre Fábio de Melo trazendo a público esta condição eu pensei: - Puts.

Foi para televisão, se expôs e falou. Falou e colocou umas milhões de pessoas (sim, esta estatística traz nas costas muitas milhões de pessoas) para se reconhecer naquelas palavras. A sensação de morte; o medo do medo; escravo do medo. E não para por ai. É o ar faltando. É o coração batendo no peito. É nada parando no estômago. É o cérebro de algodão. É o pavor.

Outra palavra não serviria tão bem: é o pânico.

Quando eu tive minha primeira crise muitas premissas minhas se quebraram. Todo controle que a gente passa os anos tentando ter sobre a gente e pelo que está ao nosso redor se desfaz em um piscar de olhos. Não tem aviso. Você está ali e de repente não é mais você, não é mais você sob controle de nada, como se sua vida não te pertencesse.

Quando você tem uma crise desta, você se pergunta ao universo: Porque eu? Não é invenção, não é frescura, não é impressão. É um transtorno químico. E para acabar com aquilo ali a gente topa tudo ou qualquer coisa.

Me lembro de que quando eu fui ao primeiro médico no meio da primeira crise [literalmente], tive uma sorte imensa de cruzar com um profissional que não negligenciou nem por um segundo o que estivesse acontecendo ali. Era sexta-feira no fim da tarde, ele poderia ter ido embora, tomar seu vinho, namorar. Mas ficou ali, durante três longas e sofridas horas até eu ter condições de ir embora. E mais eu, a pessoa que não toma remédio nem para dor de cabeça, pedi, finalmente, socorro: “Qualquer coisa que me garanta que isso não vá acontecer de novo”.

Eu sou uma otimista incurável, resiliente, quase implacável (no bom sentido). Mas eu vivo e experimento minhas aflições como qualquer um. Nos últimos tempos, após o fim meio delicado (e qual não é?) de um relacionamento, naqueles primeiros dias mais difíceis, além do super amor que eu recebi de todos os lados, eu também percebi um incômodo muito evidente das pessoas com minha quebra.

Um grande amigo, meu pai, a velha amiga. Vi aqueles olhareszinhos em cima de mim, como a se dizer: Uai, ela também dói? Sim, pessoal, sofro de questões corriqueiras (ciúmes, rejeição, términos) e outras nem tão corriqueiras assim (questões existenciais, síndrome do pânico, casar ou comprar uma bicicleta). E aí pensei muito nestes dias porque é que a dor em qualquer de suas formas assusta tanto as pessoas. As dores não são as vilãs; são na verdade um afago, um alívio, quase um pedido para que a gente viva cada processo inteiramente. Começo, meio e fim (quando ele há de chegar, digo sempre).

Não sou adepta de eternizar sentimentos, de santificar os mortos, de supervalorizar pessoas ou situações. Mas viver os ciclos na sua integralidade é essencial para que a vida tenha algum sentido. Tirar lições. Aprender com o que vai. E com o que fica. Saber a hora de ir embora. Viver o luto de cada perda. E vivemos diariamente dezenas de pequenas e enormes perdas.

E porque eu misturei duas temáticas? Porque ambas têm a ver com questões inerentes e naturais do ser humano. Amores, desamores, perdas, dores, a mente humana, o comportamento, as necessidades íntimas e profundas de cada um.

Receber há onze meses o diagnóstico de síndrome do pânico pressupôs um processo interno muito delicado para mim. Tive que re-significar muitas verdades absolutas, tive que ceder ao que extrapola meu controle, tive que aceitar a fragilidade do nosso corpo. Tive que aceitar. 



Mas também aprendi e venho diariamente aprendendo a aceitar esta condição. A falar sobre ela. A reconhecer a dor do outro. O problema do outro. A não ter vergonha de dizer e entender que não há pecado em se reconhecer frágil ou com um problema físico ou biológico. A entender que nossas perdas são fundamentais e se eu tivesse passado a vida perdendo menos, eu não seria quem eu sou hoje.  Infelizmente a primeira crise não foi a única, outras duas e tão ou mais horríveis quanto a primeira vieram. Isso não me faz vítima, não me faz fraca, nem me impede de dizer que uma vez com medo, a gente vai com medo mesmo. 

Mas só aceitando e desmistificando determinados padrões de comportamento (que eu particularmente nunca fui muito tendenciosa a adotar mesmo) tem-se condição de aceitar e tratar adequadamente este problema que não é do Fábio de Melo, não é meu, mas é de qualquer ser que se permita e que se reconheça humano.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Naquele altar.

E quando eu te vi naquele altar perdi o ar. Tudo girou. Tive vontade de vomitar. Meu coração parou. Tudo isso por três infinitos segundos. Você estava no altar e não era eu indo na sua direção. Teria pensado que ainda era amor. Mas acho que foi um ataque epilético do coração. É que amor não tira o ar, mas enche os pulmões com uma respiração profunda, tipo suspiro. Amor não faz tudo girar, mas altera a velocidade da rotação da terra. Amor não dá vontade de vomitar, mas dá fome de amanhã, apetite do para sempre. Amor definitivamente não faz o coração parar, mas disparar, em um ritmo bonito e suave de alguma trilha sonora antiga que nos dizia que o amor aparece mesmo onde ninguém ousaria supor.

E quanto eu te vi naquele altar eu entendi que não é mais amor. Aí eu quis saber. Será que já foi? Será que fui livrada como em outras tantas vezes? Será que a gente aconteceu predestinado desde o início a não ser? Será que aquilo de achar que determinávamos o que aconteceria era tudo pegadinha do que já estava destinado a não acontecer? Será que seu abraço fazia parte de todos aqueles que eu teria que experimentar até encontrar o dele e ter certeza que era o certo? Mas a verdade é que eu não me sinto exatamente livrada de você. Desejei muitas coisas para nós dois. Em alguma medida elas aconteceram. Teve muita vida, seguida de mortes e renascimento e encontros e desencontros e perguntas. Perguntas sem resposta, perguntas que a gente não teve tempo ou vontade ou coragem de responder. Mas não fui livrada. Te perdi, ou talvez você tenha me perdido primeiro; não que a ordem altere o resultado.

E quando eu te vi naquele altar desejei que você fosse feliz como eu desejei um dia que nós fossemos juntos. Você me parecia mesmo feliz, sabia? E eu fiquei feliz também. Me lembro quanto foi ruim quando você disse ter se tornado um solitário depois de mim. Porque eu não achava que eu fosse capaz de ser a mulher que você esperava. Mas eu também achei que você não ia ser capaz de encontrar outra mulher como eu. E agora você escolheu alguém. E eu sinto alívio. E espero que ela te escreva cartas como as minhas, que divida músicas e poesia com você, que perca o sono de madrugada, quando você também está acordado para falar de estrelas ou impossibilidades, que te beije na chuva, que entenda seus silêncios e recuos, que vibre com seus retornos imprevisíveis e que te ache um cara tão sensacionalmente confuso e incrível quanto eu achei.

E quando eu te vi naquele altar eu soube e entendi que não era mesmo para ser eu. Te entendi melhor por ter ido embora, mesmo achando que exagerou na quantidade de vezes. Continuei sem entender seus sim’s, suas permanências, suas voltas, mas entendi suas partidas, suas fugas, seus não’s, uns seguidos dos outros até o último que nunca acabou. 

Ainda lembro a primeira vez que te vi, que te olhei. E agora provavelmente vou lembrar da última, naquele altar. Provavelmente ainda vamos nos encontrar por aí, no shopping, no supermercado, em um restaurante qualquer. Mas esta, ah, esta foi sim a última vez; quando eu te vi naquele altar.

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Brownie fit (por favor, não)!



Eu não escolhi a minha intensidade, a personalidade inquieta, o cérebro acelerado, que só descansa diante de uma criança, de pão de queijo, de um bom livro ou de um bom amor. Preciso de entender tudo que eu toco, quero que tudo que eu encoste queime de frio ou calor. Tenho evidentemente uma ânsia para sentir a vida acontecendo em tudo aquilo que me compõe ou cerca.

Meus momentos, são vividos sempre - se não como se fossem os últimos - como se fossem os únicos. Intensidade. Tem um preço. Sou normalmente guiada por um tempo que não acompanha o relógio. Durante a minha vida me doei a tudo que eu fiz? Sim. Coloquei o máximo de energia em toda experiência? Sim. Isso muitas vezes nos leva a caminhar mais rápido que nossos passos aguentam, tropeçar e cair? Às vezes. Isso quer dizer que alguma coisa poderia não ter sido feita para evitar as pequenas tragédias da vida? Não necessariamente.

A gente entra aí mais ou menos no campo daquele clichê, do qual dificilmente as pessoas escapam, quando somos perguntados:

-       - Você se arrepende de alguma coisa que você fez na vida?

E aí a resposta costuma ser automática, quase um perdão, um conforto, um presente de nós para nós mesmos:

- Não, prefiro me arrepender do que eu fiz, do que do que eu não fiz.

Engraçado como as pessoas tendem a ser reticentes e evitar a todo custo dizer que teriam feito alguma coisa diferente. Poxa, não somos tão idiotas assim. Não vou dizer que já não pensei mil vezes se determinadas coisas teriam sido diferentes na minha vida se em um determinado dia eu não tivesse saído de casa, se eu tivesse evitado uma situação ou sido mais firme no não ou no sim. Se eu tivesse seguido uma intuição, não fugido por medo, não evitado um sentimento.

Não é tão ruim assim assumir que talvez se pudéssemos escolher algumas coisas tivessem sido feitas de outro jeito, ainda que se refira a algo que a gente não fez. É inteligente olhar para vida assim e alimenta os próximos passos. A experiência nos ensina a desacelerar nas horas certas, a não tomar decisões importantes em um segundo, a não deixar a vontade do outro em primeiro lugar quando a gente acredita no que está fazendo.

Mas o que me pega para responder esta pergunta não é exatamente não enxergar que algumas etapas da minha vida poderiam ter sido ultrapassadas de um jeito diferente. Porque em fim das contas eu sou integralmente reconciliada com todos os eventos pelos quais já passei, tendo sido agente ou vítima, já me concedi um perdão demorado por todas as pessoas que magoei, até quando esta pessoa fui eu mesma.

Mas o que está efetivamente em jogo nesta história é não saber quem de fato eu seria se eventualmente tirasse alguns elementos da minha história.

E se tivesse sido diferente? Assim, meio no clima do “efeito borboleta”, alterar determinados elementos tão significativos a ponto de serem lembrados neste momento, me levariam para onde, me tornariam o que? Eu ainda seria eu? Porque eu não sou capaz de abrir mão é disso. Eu não queria ser outra pessoa, nem uma versão diferente desta que eu me tornei. Eu sou cheia de remendos e cheias de traumas para curar e cheia de barreiras para vencer. Mas eu não queria ser diferente. Quando eu acordo eu quero morar em mim, eu sou o tipo de pessoa que eu gostaria de conhecer. Imprevisível naquilo de não se prever, inconstante naquilo de não se estabilizar, um caminhão de amor naquilo de se amar.

Outro dia li na internet algo parecido com “receita de brownie sem lactose, sem açúcar, sem óleo, sem glúten, à base de alfarroba”.

Quem quiser pode continuar chamando isso de brownie, mas de fato se trata de um? Ou só parece? Talvez seja uma outra coisa qualquer. Talvez nem seja ruim. Talvez seja mais saudável. Mas não é brownie. Não tem o mesmo sabor, nem a mesma textura ou a mesma quantidade de açúcar e chocolate capazes de alterar os níveis de endorfina no corpo.  

Seria assim com a gente também, eu imagino. Altere o percurso por onde andei e ainda vai parecer que sou eu. Mas o gosto, a textura e a habilidade para dizer mais sim do que não, não serão iguais.

Então me decidi. Se me perguntarem se eu me arrependo de alguma coisa na vida, minha resposta não é mais a mesma. Eu, claro, me arrependo de algumas atitudes ou abstenções já tomadas. Mas não, eu não gostaria de ter feito nada diferente, de alterar o curso de nada. Estar onde eu estou, me sentir onde eu deveria estar, girando na minha própria velocidade, sabendo me fazer as perguntas certas e com a sensação de ter as boas respostas, me sentindo pronta para o que vem amanhã... não, não dá para abrir mão disso.

Não poderia abrir mão disso para me tornar um brownie fit, que é qualquer coisa menos um brownie. Ou eu seria qualquer pessoa, menos eu. 

O que finalmente eu quero dizer é que nossos defeitos, nossos desacertos, nossas omissões são o que efetivamente nos compõem. Uma vida correta demais, encaixada demais, controlada demais, pode ter aparência de paz, mas me parece muito mais com tédio. Para alcançar uma verdadeira paz, temos que tocar o caos, o diferente, o novo, o outro, outras vidas, lugares e sensações que nos levem para algum lugar distante da obviedade que não é capaz de nos provocar outra coisa senão perdas inevitáveis do tesão em viver.

terça-feira, 31 de maio de 2016

Desculpa, então, Luiz Otávio.

Fim de tarde. Desci para fazer um lanche. O livro de leis em uma mão, o cartão do banco na outra. Assentei nas mesas da rede de sanduíches que fica embaixo do escritório. Juro que eu estava comendo um salgado fit comprado na padaria ali perto, mas as mesinhas me pareceram um bom lugar para assentar.



Somos uma geração movida a grandes tragédias. Tanta informação, tanta preocupação, tantos projetos para serem realizados ao mesmo tempo, tantas relações para gerir, tanta satisfação para dar, tantas metas para não se estabelecer e quando forem alcançadas serem dobradas, que a gente só reage na marra. Só nos preocupamos com o meio ambiente quando estamos diante do maior desastre natural ocorrido em nosso país, só nos preocupamos com as nossas mulheres quando há um estupro coletivo realizado por dezenas de “caras”, só nos preocupamos com o terrorismo quando ele acontece em um lugar balado na cidade Luz ou quando um avião com civis é derrubado, só nos preocupamos com imigração quando o pequeno sírio Alan foi fotografado morto na beira da praia.



Somos uma geração movida a tragédias tão grandes, que esquecemos de olhar para as tragédias diárias que nos cercam. Vou primeiro dizer que sou estranhamente viciada nos detalhes, em dar para minha vida um sentido diferente todos os dias. Em não perder o tanto de vida que acontece o tempo inteiro nas pequenas coisas, nas cores, nas flores, na poesia, que gravada no meu corpo me lembra que eu não quero perder a graça de fazer poesia com a vida. Mas se eu reparo em pequenos gestos, em gentileza, em alguém que me sorri sem esperar nada em troca, em quem olha nos olhos quando entra no elevador, essa minha lista aí também cresce logo ali.



Eu não consigo deixar de ver. E aí, voltando pra história ali de cima, hoje eu estava lá assentada, tentando ler e comer meu salgado fit, quando fui interrompida pela terceira ou quarta vez, por um outro rapazinho perguntando se “a tia aqui não podia comprar um lanche para ele”. É chato isso né? É. Mas a gente se convence que é chato porque “a refeição é um momento de privacidade” ou porque “a gente quer ler sossegado” ou porque “quer falar ao telefone sem ser interrompido”. Só que não é nada disso. É chato porque é a tragédia ali, sendo esfregada na nossa cara. É chato porque quando eu me alimento eu não quero sentir o estômago embrulhar por ter tão pouco a fazer naquela situação a não ser dizer não ou dar logo o tal lanche para a criança sabendo que isso não resolve aquela tragédia na minha frente que tem cara de ser pequena, mas é enorme.



A criança, - este último não era tão criança assim -, devia ter uns 14 anos e parecia ter 11 porque eles sempre parecem mais novos do que são. Eu me peguei distraída com um cheiro. Cola. E levantei o olhar. Quando olhei para ele tive uma espécie de déjà vu da pior natureza. Sério, que merda (e desculpem de coração o palavrão que normalmente eu uso quando estou feliz, mas aqui não deu para não ser). Poxa. Nossas tragédias, por todos os lados, e a gente finge que não é com a gente. Eu não estou escrevendo isso para explicar o que todo mundo está cansado de saber, nem o motivo do meu aperto no peito. Eu estou escrevendo para frisar que meu déjà vu voltou 5 anos no tempo, na história que eu contei aqui; para lembrar que o tempo passou e tão pouca coisa mudou.



Para lembrar que nossas tragédias estão vivas ao nosso redor e a gente não tem tempo ou coragem de olhar para elas com o olhar certo. Era o mesmo cenário. Era a mesma tragédia. Talvez fosse até a mesma criança que cresceu, e cuja a vida não se tornou melhor. Mas também se não for, se for outro, continua sendo só a mesma estatística a qual me referi da outra vez.



Dessa vez eu não consegui relaxar, eu não consegui entender do que ele precisava mais naquele momento. Dessa vez eu não consegui dar nada para ele que fizesse ele se sentir melhor como na outra ocasião eu achei que tivesse feito. Hoje eu só falei para ele se assentar, comprei uma batata e um suco e esperei ele comer, para não correr o risco dele ser expulso de lá durante o lanche. Ele comeu, mexendo nas minhas chaves em cima da mesa, como se fosse um jeito de mostrar que a gente estava junto. O que não evitou que ele fosse expulso de lá aos gritos – e isso não é modo de dizer - menos de dez minutos depois, quando uma espécie de segurança da lanchonete passou por ele ainda rodando por ali e sentiu aquele cheiro. Cola.



Depois dos gritos, do olhar amedrontado (e drogado) daquele novo Luiz Otávio, cujo nome de verdade eu não tive tempo de saber, o segurança se voltou para nós assentados ali dentro e se desculpou. Se desculpou pelo “constrangimento”. Sem nem se dar conta de que temos um problema muito maior que o constrangimento que a situação nos causou. Sem nem sem dar conta de que deveríamos estar constrangidos por outro motivo. Sem nem se dar conta que quem deve desculpas somos nós. Sem nem se dar conta que quem deve desculpas somos nós, para os Luiz Otávio’s do caminho, pelas tragédias em que nós os transformamos.




Desculpa, então, Luiz Otávio.

terça-feira, 3 de maio de 2016

Essa coisa de ser livre.

“E aqueles que eram escravos entenderam errado esta coisa de ser livre”.

Ser livre tem a ver com não permitir que o olhar do outro determine a maneira como eu me comporto.
Ser livre é não colocar sobre si mesmo um olhar que imputa culpas, ao invés de responsabilidades sobre nossas atitudes.
Ser livre é ter coragem de dizer que é amor.
Ser livre é não ceder nunca ao “se todo mundo faz assim, deve estar certo”.
Ser livre não tem nada a ver com fazer qualquer coisa, mas tem a ver com fazer o que é bom para gente mesmo.
Ser livre é não deixar ninguém escolher o que me faz feliz.
Ser livre é escolher conscientemente onde colocar minha felicidade.
Ser livre é aceitar que desde que minhas escolhas não reflitam negativamente no outro, elas são minhas.
Ser livre é escolher ter três filhos.
Ser livre é escolher não ter nenhum filho.
Ser livre é escolher que o único amor que merece o seu é o dos cachorros.
Ser livre é se apaixonar todos os dias. Pela mesma pessoa ou por uma pessoa a cada dia.
Ser livre é aceitar que eu ainda amo aquele cara, mas que esse amor não paralisou minhas opções de ser feliz.  
Ser livre é poder ter o número de parceiros que você quiser. E ser livre é escolher esperar.
Ser livre é se orientar sexualmente no sentido que for.
Ser livre é trabalhar com algo que te dê prazer e não estar acorrentado a um salário.
Ser livre é escolher seu próprio estilo de vida.

E eu sou.

Eu sou livre quando transbordo, quando falo a verdade.
Eu sou livre quando falo não, quando fico em casa sábado à noite ou quando volto no dia seguinte.
Eu sou livre graças a meus pais que me deixaram ser o que eu quisesse.
Eu sou livre quando não desejo a vida, o corpo, o dinheiro ou a história de ninguém.
Eu sou livre quando sorrio para um estranho na rua.
Eu sou livre quando paquero alguém no metrô.
Eu sou livre quando não dou aquele beijo na frente do portão no fim da noite.
E sou livre quando roubo este mesmo beijo.
E eu sou livre quando não deixo dizerem que mulher não deveria falar palavrão. Nem falar alto.
E sou livre quando não falo palavrão. E quando falo alto.
Eu sou livre quando saio de saia curta.
E sou livre quando me nego a colocar um salto alto.
Eu sou livre quando viajo sozinha.
Eu sou livre quando não aceito seu não como resposta.
Eu sou livre quando choro no saguão do aeroporto.
Eu sou livre quando me apaixono pelos personagens dos livros que eu leio.
Eu sou livre quando não deixo fazerem por mim escolhas que impactarão diretamente no resto da minha vida.
Eu sou livre quando digo sim para um pedido de casamento. E sou livre quando digo não, uma, duas e três vezes.
E sou livre quando sou solteira.
E sou livre quando eu namoro.
Eu sou livre quando não aceito os rótulos que me oferecem.
Eu sou livre quando aprendo a comunicar o que eu sinto.
E sou livre quando não quero falar sobre isso.
Eu sou livre quando fico.
E sou livre quando vou embora.

Eu não sou absolutamente livre, ninguém é. Atribuímos filtros à nossas próprias histórias. Do instagram, dos nossos pais, da lente do outro. Mas há uma busca constante. Enquanto eu puder, eu quero construir minha história com base em uma liberdade adquirida, concedida à base de muitas auto responsabilizações, mas com o conforto definitivo da compreensão da lei dos efeitos e defeitos. Só um perdão demorado oferecido a nós mesmos nos permite caminhar livres, guiados por alguma coisa que se a liberdade não explicou, não deve mesmo ter nome.
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...