Fim de tarde. Desci para fazer um lanche. O livro de leis em
uma mão, o cartão do banco na outra. Assentei nas mesas da rede de sanduíches
que fica embaixo do escritório. Juro que eu estava comendo um salgado fit
comprado na padaria ali perto, mas as mesinhas me pareceram um bom lugar para
assentar.
Somos uma geração movida a grandes tragédias. Tanta
informação, tanta preocupação, tantos projetos para serem realizados ao mesmo
tempo, tantas relações para gerir, tanta satisfação para dar, tantas metas para
não se estabelecer e quando forem alcançadas serem dobradas, que a gente só
reage na marra. Só nos preocupamos com o meio ambiente quando estamos diante do
maior desastre natural ocorrido em nosso país, só nos preocupamos com as nossas
mulheres quando há um estupro coletivo realizado por dezenas de “caras”, só nos
preocupamos com o terrorismo quando ele acontece em um lugar balado na cidade
Luz ou quando um avião com civis é derrubado, só nos preocupamos com imigração
quando o pequeno sírio Alan foi fotografado morto na beira da praia.
Somos uma geração movida a tragédias tão grandes, que
esquecemos de olhar para as tragédias diárias que nos cercam. Vou primeiro
dizer que sou estranhamente viciada nos detalhes, em dar para minha vida um
sentido diferente todos os dias. Em não perder o tanto de vida que acontece o
tempo inteiro nas pequenas coisas, nas cores, nas flores, na poesia, que
gravada no meu corpo me lembra que eu não quero perder a graça de fazer poesia
com a vida. Mas se eu reparo em pequenos gestos, em gentileza, em alguém que me
sorri sem esperar nada em troca, em quem olha nos olhos quando entra no
elevador, essa minha lista aí também cresce logo ali.
Eu não consigo deixar de ver. E aí, voltando pra história
ali de cima, hoje eu estava lá assentada, tentando ler e comer meu salgado fit,
quando fui interrompida pela terceira ou quarta vez, por um outro rapazinho
perguntando se “a tia aqui não podia comprar um lanche para ele”. É chato isso
né? É. Mas a gente se convence que é chato porque “a refeição é um momento de
privacidade” ou porque “a gente quer ler sossegado” ou porque “quer falar ao
telefone sem ser interrompido”. Só que não é nada disso. É chato porque é a
tragédia ali, sendo esfregada na nossa cara. É chato porque quando eu me
alimento eu não quero sentir o estômago embrulhar por ter tão pouco a fazer
naquela situação a não ser dizer não ou dar logo o tal lanche para a criança
sabendo que isso não resolve aquela tragédia na minha frente que tem cara de
ser pequena, mas é enorme.
A criança, - este último não era tão criança assim -, devia
ter uns 14 anos e parecia ter 11 porque eles sempre parecem mais novos do que
são. Eu me peguei distraída com um cheiro. Cola. E levantei o olhar. Quando
olhei para ele tive uma espécie de déjà vu da pior natureza. Sério, que merda
(e desculpem de coração o palavrão que normalmente eu uso quando estou feliz,
mas aqui não deu para não ser). Poxa. Nossas tragédias, por todos os lados, e a
gente finge que não é com a gente. Eu não estou escrevendo isso para explicar o
que todo mundo está cansado de saber, nem o motivo do meu aperto no peito. Eu
estou escrevendo para frisar que meu déjà vu voltou 5 anos no tempo, na
história que eu contei aqui; para lembrar que o tempo passou e tão pouca coisa
mudou.
Para lembrar que nossas tragédias estão vivas ao nosso redor
e a gente não tem tempo ou coragem de olhar para elas com o olhar certo. Era o
mesmo cenário. Era a mesma tragédia. Talvez fosse até a mesma criança que
cresceu, e cuja a vida não se tornou melhor. Mas também se não for, se for
outro, continua sendo só a mesma estatística a qual me referi da outra vez.
Dessa vez eu não consegui relaxar, eu não consegui entender
do que ele precisava mais naquele momento. Dessa vez eu não consegui dar nada
para ele que fizesse ele se sentir melhor como na outra ocasião eu achei que
tivesse feito. Hoje eu só falei para ele se assentar, comprei uma batata e um
suco e esperei ele comer, para não correr o risco dele ser expulso de lá
durante o lanche. Ele comeu, mexendo nas minhas chaves em cima da mesa, como se
fosse um jeito de mostrar que a gente estava junto. O que não evitou que ele
fosse expulso de lá aos gritos – e isso não é modo de dizer - menos de dez
minutos depois, quando uma espécie de segurança da lanchonete passou por ele
ainda rodando por ali e sentiu aquele cheiro. Cola.
Depois dos gritos, do olhar amedrontado (e drogado) daquele
novo Luiz Otávio, cujo nome de verdade eu não tive tempo de saber, o segurança
se voltou para nós assentados ali dentro e se desculpou. Se desculpou pelo
“constrangimento”. Sem nem se dar conta de que temos um problema muito maior
que o constrangimento que a situação nos causou. Sem nem sem dar conta de que deveríamos estar constrangidos por outro motivo. Sem nem se dar conta que quem
deve desculpas somos nós. Sem nem se dar conta que quem deve desculpas somos
nós, para os Luiz Otávio’s do caminho, pelas tragédias em que nós os
transformamos.
Desculpa, então, Luiz Otávio.
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