Alguns meses antes de eu vir para o hemisfério de cá, uns
ladrões entraram lá em casa. Não estávamos lá. Não houve nenhum dano
irreparável. Foram apenas os bens materiais. A gente se dói mais na verdade é
com o valor sentimental de alguns. Foi-se embora por exemplo um relógio de
bolso que meu avô levava sempre no bolso. Me lembro de Lucas e eu brigando para
saber quem ia ficar com o relógio quando meu pai morresse. Seria cômico, se não
fosse meio trágico. Meu pai estava lá vivinho da Silva e a gente brigando para
ficar com um relógio que provavelmente seria a última coisa que a gente ia querer
quando meu pai se fosse.
Lucas deixou o relógio ficar comigo, assim como o melhor
quarto, o melhor pedaço do bolo ou que quer que eu quisesse, porque ele não
falava não para mim. Fingia que falava, depois resmungava alguma coisa e
voltava atrás. Bom, mas neste dia, no que os ladrões entraram lá em casa,
quando cheguei corri para o meu quarto para ver como estava. Estava tudo
esparramado pelo chão, minhas roupas, uma lata de bombons vazia (os bombons eles
levaram), meus sapatos todos pelo quarto. Me lembro de ter sentido um segundo
de alívio quando olhei meus livros e eles não tinha sido mexidos. Depois um
segundo alívio quando vi o colarzinho de couro vagabundo que era do Lucas,
pendurado na parede, no gancho da rede. Ele pagou caro nesta porcaria e não me
deixava usar. E depois voltava atrás e deixava. Ele também deixou o colar para
mim.
Me lembro também de ter assentado na minha cama, pensando
que eles poderiam não ter jogado tudo daquele jeito. E um segundo depois levantei
correndo, porque tive um pensamento estranho de que o ladrão
tinha passado as partes íntimas nela só para me sacanear. Seria de novo cômico,
se não continuasse sendo meio trágico. Mas naquele dia, eu senti uma sensação
que não estou conseguindo agora exatamente descrever. De toda forma não
perdemos nada, não era das boas. Era uma sensação de terem mexido nas minhas
coisas, uma sensação de querer jogar aquilo tudo fora, de sei lá, de me sentir
invadida intimamente por estranhos, de sempre ter a sensação de que podia estar
faltando alguma coisa. A sensação de ter tido a fechadura da minha janela
quebrada, é isso. Com tudo que vai dentro e é muita coisa.
Quando meu irmão se foi, quando eu e meus pais voltamos para
casa ela estava vazia. Quer dizer, minto, ela estava lotada, mas de alguma coisa que
a gente não podia ver. Era a sensação parecida com ter tido a casa revirada. A
sensação de estar tudo fora do lugar, de que um vento forte ou quaisquer ladrões
idiotas tinham passado e espalhado tudo pelo chão, quebrado tudo em milhares de
pedaços. Acho que não era só a sensação desta vez. Mas eu já contei esta história. Aos poucos o
vento leva alguns pedaços para longe, para o quintal, para o Rio de Janeiro,
para Paris, para a Antartida. E o que sobra, a gente vai catando e colando.
A gente não volta a ser igual, mas fica tipo arte moderna.
Um mosaico,talvez. Uma colagem meio abstrata, quem sabe.
Daí depois disso, depois que ele se foi e tudo foi recolocado
em seus novos lugares, a gente passa por uma fase engraçada. A fase do
transbordar, transpirar, vomitar, amor. A gente quer fazer a vida valer à pena,
quer ter um sentido maior que simplesmente existir. E se faz mil promessas. Ali
eu jurei que nunca mais ia brigar com minha mãe, que nunca ia responder com impaciência
meu pai, que nunca faria nada que fosse decepcionar meu irmão, que nunca mais
ia guardar mágoa, que ia parar de dar minha opinião quando ela desagradasse as
pessoas. A gente pensa: se eu não tiver aqui amanhã, isso vai ter valido de
que? Naquela hora isso é tudo que você tem. Você está imune. Ninguém pode mais
te machucar mais do que a vida já fez e o mais importante que você adquiriu é o
direito de nunca deixar para amanhã para falar o quanto você ama alguém ou o
quanto alguém é importante para você.
E aí o tempo vai passando e a gente vai percebendo que nos
enganaram. Além de ser um mosaico, somos um mosaico equivocado. Alguma obra surrealista, talvez. Um Salvador
Dali falsificado. Não, não dá para viver deste jeito aí. Estávamos anestesiados
quando nos fizemos estas promessas, efeito do choque. Mas na verdade, quebrados
deste jeito, não nos permitimos mais estes luxos todos. Me permiti sim guardar
mágoa -, afinal, a gente também tem o direito de doer; só não dói. Eu já
briguei com minha mãe, já perdi a paciência com meu pai, mesmo já tendo
aprendido outros caminhos para evitar isso, não é mais pela promessa inocente feita lá atrás. Eu acho que dei todos os dias
opiniões que desagradam as pessoas, porque descobri que não tenho tempo de ser
alguém que eu não sou. Eu já fiz uma mão cheia de coisas que decepcionariam meu
irmão e isso dói mais em mim do que doeria nele. Mas principalmente,
principalmente, a promessa mais dolorosamente não cumprida é a de se jurar nunca
esperar o amanhã para falar que ama alguém.
Ah. A vida passa, eu sou de leão, a gente não aprende a ser
o primeiro a dizer te amo. A vida passa, eu sou de leão, eu não sei amar em
primeiro lugar. A vida passa, eu sou de leão, eu já me quebrei. Pronto, sou um
mosaico, sem valor de mercado, incapaz de dizer te amo em primeiro lugar. Aí
hoje eu cheguei em casa, depois de fazer uma dissertação de três horas em
francês sobre um tema sobre o qual eu não saberia falar nem em português. Aí eu
assentei aqui no chão, do meu jeito. Aí eu quebrei meu regime e comi meia
batata doce inteira. Aí eu também pulei a corrida de hoje, porque já tinha escurecido
e eu tenho medo dos parques à noite.
Aí eu fui ver o último episódio de uma série que eu gosto.
Primeiro eu senti raiva. Senti raiva porque é mentira. Senti raiva porque só
consegui cumprir minhas promessas por alguns meses depois da morte do Lucas e
eu já perdi esta habilidade faz tempo. Senti raiva porque lá estava o cara mais
insensível da série cedendo aos mistérios da morte e dizendo: "Mas agora que
você foi embora, eu entendo o que você significava. Não deixe o momento passar.
Não deixe as pessoas que você ama passarem por sua vida sem dizer a elas o que
você sente, porque a vida passa e tudo acaba. E não deixarei outro minuto
passar sem dizer a você o quanto é importante para mim. Eu amo você."
Aí eu tive um segundo de um tipo de emoção que eu adoro. Um
tipo de emoção que me deixa viva. E ai eu volto a ser por um minuto uma versão
minha que eu já perdi no caminho. Eu volto para aquele momento lá atrás quando
a casa parecia o chão do meu quarto. Quando as coisas não estavam em seus
lugares. E quando eu tive certeza que mesmo que a gente recolhesse tudo e
colasse, nada nunca mais seria igual. Eu volto lá para dizer que eu percebi que
tem muito tempo que eu ando fingindo e cansei. Volto para lá dizer que sim você
é importante para mim e pode ser que isso seja amor.
E volto para dizer que a parte boa de estar na porta do
quarto com tudo quebrado e esparramado pelo chão é que não faz diferença. Eu
posso fazer estas promessas, eu posso dizer o que eu quiser, eu posso fazer o
que eu bem entender e depois eu posso simplesmente ir embora e fingir que nunca
voltei lá.
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