quinta-feira, 19 de março de 2015

Ela e Steve, e eles foram felizes para sempre.


Era o meio da manhã. Normalmente neste horário não tem ninguém no parque. Quem trabalha, já está trabalhando. Quem está de folga, ainda dorme. Ela costumava escolher estes horários estranhos para correr exatamente em função do encantamento que vê em ter lugares para estar integralmente só.

Quando ela chegou, ele se alongava por ali e a olhou. Olhou quando ela se aproximava da entrada, - fechada neste dia para a montagem de um evento -, e a observou voltando. Ele a olhou e não parou mais de olhar. Com uma falta de jeito tipicamente francesa se aproximou e perguntou se ela conhecia a outra entrada do parque que dava acesso às pistas de corrida superiores.

Ele a mostrou o caminho. Ela e Steve passaram o resto da manhã e parte da tarde por ali. Steve a olhava daquele jeito, aquele que a gente olha quando gosta das pessoas antes de conhecê-las direito. Ele a olhava enquanto ela falava, enquanto ela corria, enquanto ela cantarolava, enquanto ela sorria, enquanto ela respondia às 73 perguntas que ele fez, enquanto ela colocava as mãos no joelho e respirava ofegante, enquanto ela ria alto. Ela fingia que não via. E por não fazer questão de despistar tantos olhares, ele sabia que era fingimento. E gostava. 

Para responder aquelas tantas perguntas ela dividiu uma parte de um mundo inventado com ele. Alterou detalhes da realidade. Deu respostas vagas ou parcialmente inverídicas, quando sabia que ele as esperava. Deixou perguntas sem resposta, quando não tinha um boa. Seja porque ele era um estranho, ainda que aparentemente incapaz de fazer mal a qualquer um que não ele próprio, seja porque ela gostava de satisfazer as expectativas delirantes de Steve com relação àquilo que ele obviamente imaginava sobre ela.

Ela não é exatamente linda, não tem aptidão para ser sósia de Angelina Jolie ou de Alessandra Ambrósio, mas sabe que tem alguma coisa e, principalmente, sabe o que é. Sabe que sua voz causa uma inquietação provocante, sabe que o branco da sua pele e o preto de seu cabelo ocupam como que propositalmente extremos da palheta de cores, sabe que seus olhos ficam pequenininhos quando ri e ri o tempo inteiro.

Ela tem mania de tentar descobrir em qual momento ultrapassa a linha que separa duas pessoas. Desta vez foi quando ele pediu para ouvir o que ela escutava nos fones de ouvido. Fruto dos não-acasos que ela atrai todo o tempo porque gosta de inventar amores, tocava uma dupla sertaneja romântica especializada em dores agudas de cotovelo. Ele perguntou sobre o que era a letra da música. Ela disse que se tratava de uma proposta indecente de um homem para uma mulher. E acrescentou sem alterar a expressão que era uma proposta de amor eterno. -Certamente das propostas mais indecentes do mundo; ela disse isso e não riu.

Quando ela se despediu, Steve, que “nunca leva o telefone para as corridas”, pediu, com a mesma falta de jeito ali de cima, para ela anotar seu telefone e lhe enviar uma mensagem para que eles pudessem se rever. Ele disse, desta vez menos sem jeito do que antes, que ela tinha que mandar a tal mensagem, sob pena de transformar sua vida em um caos. Disse como quem fala uma verdade transparente e genuína: "Imagina eu voltar todos os dias neste parque, cada vez em um horário diferente, te procurar sem saber se eu vou te achar, desejar colocar um anúncio em cada árvore e te enxergar em cada morena que correr na minha direção. Imagina?!".

Ela imaginou. Anotou seu número, prometeu enviar uma mensagem e foi embora. Evitou o abraço (porque tem se tornado estranha com relação a contatos físicos despropositados). Ao atravessar as duas avenidas grandes que separavam seus caminhos, olhou para trás e ele ainda estava ali parado. E ela pôde sentir seu olhar sobre seus passos até sumir de vez na esquina.

Ela nunca enviou mensagem alguma. O melhor amigo chamou de maldade, um colega de sala de inadequado, o outro de triste. Mas ela, ela acha que fez um favor enorme para Steve. Se ela tivesse o procurado, não teria para lhe oferecer mais que uma declarada e inabalável indisponibilidade afetiva.

Mas ao contrário disso, ela ofereceu para ele um amor eterno. Ela conferiu à Steve o controle da situação. Ele vai poder criar o fim da sua própria história, a seu próprio modo e gosto. “Ela anotou o número errado. A mensagem se perdeu no espaço. O celular foi roubado. Ela foi atropelada, sequestrada, deportada.” Muito mais sentido que ser só dispensado do amor. Ela o poupou. Ela é uma boa mulher.

A gente tem que saber a hora de colocar o ponto final nas relações afinal de contas. Existe sempre um momento ideal para fazer isso. E tem que ser um momento em que os dois ainda estejam do mesmo lado da linha. Quando o melhor que existe no outro ainda é o que a gente imagina. É esta a hora de ir embora, de voltar para o lado de lá.

Gabriel Nunes chamou de quase-amores. Eu chamo de amores inteiros. Eles podem durar 4 anos, 4 meses ou até 4 horas e são feitos desta impossibilidade de um dos lados. Não, Steve e ela não viram filme abraçadinhos, não tomaram vinho, não fizeram amor no chuveiro, não passaram tardes deitados na grama ou no tapete da sala. Mas também não teve tédio. Não teve grito. Não teve implicância. Não teve mensagem não respondida. Não teve o tesão morrendo. Não teve amor virando pó. Ela vai ser para sempre a morena do parque e vai ter sempre aptidão para o fazer Steve o homem mais feliz do mundo.


Não, Steve e ela nunca mais se viram e provavelmente nunca mais vão se ver. Mas ela conta, e eu acredito, que eles foram definitivamente felizes para sempre.

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