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Sobreviventes somos nós.




Eu conheci a Amanda no salão. Por acaso. Queria unhas novas, liguei na recepção e pedi “a melhor”. Me deram ela. E ela era mesmo a melhor. Amanda é aquelas mulheres completas. Amanda perdeu a mãe muito cedo e foi criada pelo pai. Ela tem mais ou menos a minha idade e uma filha adolescente com já mais ou menos a metade. Na filha tem a melhor amiga. No pai, o melhor. Amanda é linda, divertida, inteligente. Cuida da sua carreira, faz cursos, se especializa. Meio manicure, meio podóloga, meio enfermeira e inteira em tudo que ela faz.

A filha e o pai. Duas pessoas que eu só conheço pelos olhos e pelas palavras da própria Amanda. E como praticamente tudo que ela emite, a descrição deles é cheia de luz. Raíssa, a filha. Adolescente. 16 anos. Melhor amiga da mãe. Bem criada. Cheia dos valores, da doçura e da espontaneidade da Amanda. Responsável. Independente para a pouca idade. Seu João. Pai jovem. Pai que foi mãe e pai e que criou a Amanda (e a Raíssa) para serem mulheres que se bastam, prontas para o mundo. Os três formam uma família, um núcleozinho lindo de amor, morando juntos, se cuidando entre si em uma sincronia deliciosa de se ver.

 O pai, Seu João, sobreviveu ao câncer por duas vezes. Depois à dois infartos.

No fim do último ano, Seu João - o sobrevivente, descobriu uma pedra na vesícula. Mas o que é uma pedra na vesícula para um sobrevivente do câncer e do coração, não é mesmo? Só que esqueceram de avisar que há batalha maior que o câncer ou que veias obstruídas querendo fazer seu corpo parar de viver. O Sistema Único de Saúde.

A pedrinha na vesícula, que levou a fama de vilã só estava ali fazendo aquilo para o que ela tem mais aptidão: avisar que está lá.

-       Hey, vocês, me tirem daqui, que estou crescendo e não vou sair sozinha.

Simples, né? Não no SUS. E foi sob os cuidados do SUS que Amanda, Raíssa e Seu João foram e voltaram do hospital umas dezenas de vezes ao longo destes quatro meses. E a pedrinha foi virando pedrona. A dorzinha foi virando uma dor só controlada com morfina. A inflamaçãozinha foi virando uma infecção generalizada. As idas e vindas casa-hospital foram se tornando mais frequentes. A permanência no hospital se tornando cada vez mais longa. Mais tempo na fila. Mais tempo na triagem. Mais tempo internado. Mais tempo no corredor. Sim, dias (eu disse dias) em uma maca no corredor, esperando um quarto a ser compartilhado. No frio, no vento, ao lado da entrada do pronto-socorro. Sangue. Mortes. Acidentes. Dor. Choros.

Mas eles devem ser uma família de sorte. A Amanda tinha até mesmo uma cadeira para passar a noite. Que sortuda. Seu João tinha  até uma maca. Que sortudo. E Raíssa tinha Amanda, lhe poupando de passar a noite lá, porque ainda dá para tentar deixá-la acreditar por mais uns anos que o ser humano é digno de mais.

Eles continuaram tendo tanta sorte. Afinal de contas, Seu João arrumou um lugar em um quarto. Ele e mais uma turminha. Seu Silva cuidando das escaras que o tempo na cadeira de roda lhe causam. Felipe cuidando de uma infecção na traqueia originada em um dente inflamado. Pedro na mesma fila do Seu João, esperando para ser operado da pedra na vesícula. Mais um sobrevivente.

Seu João não parou de sorrir. Mas parou de comer. De conseguir se levantar. Foi ficando amuado. E agitado. Seu João foi entubado. Seu João piscou 15 vezes quando Amanda pediu para ele piscar uma, caso estivesse sentindo dor. Seu João piorou. Foi para o CTI. O lugar de seu João na fila chegou. Seu João pode finalmente ser operado. Da pedra da vesícula descoberta quatro meses antes. A pedrinha que avisou que tinha que sair dali, resolveu o problema por conta própria. E a cirurgia chegou tarde. Como não podia deixar de ser.

E Seu João, o sobrevivente não sobreviveu.  A nós, que aqui estamos resta a tentativa.

Afinal de contas, somos todos sobreviventes, cheios de sorte. Não é assim?

Eu não tenho nada contra o que certas pessoas têm. Eu não quero a vida de ninguém, nem o dinheiro de ninguém, nem a carreira de ninguém. Mas não posso deixar de pensar algo. Fico feliz que o Neymar possa vir de Paris, ocupar uma ala inteira de um hospital cheiroso, silencioso e limpo, chegar de helicóptero, comboio ou sei lá o que. Eu fico feliz que ele tenha tido os dedinhos, ou sei lá o que, consertados para poder continuar sua carreira. Eu gostaria apenas de entender porque isso importa, a quem quer que seja, mais do que o que o brasileiro precisa fazer para sobreviver.

A Amanda foi embora aqui de casa há uns minutos e eu assentei na minha cama e chorei. E eu não gosto de me manifestar no calor de nenhuma sensação. Mas quer saber. Foda-se. Só consigo pensar que enche o saco o fato de que a vida e os direitos de tantas milhares de pessoas sejam só estatísticas ignoradas.

Estatísticas invisíveis. Estatísticas cegas, surdas e mudas. Sem RG ou CPF. Sem endereço. Estatísticas indigentes. Enterradas sem serem veladas. Esquecidas sem serem registradas. Estatísticas que nem entram nas estatísticas, sabe. Porque quando alguém se refere ao péssimo serviço de saúde brasileiro, isso parece vir vazio de sentido, como se a gente não estivesse se referindo a pessoas que esperam o dia, o mês e a vida para não serem atendidas, que esperam doentes em cadeiras, macas, ou filas também invisíveis, para serem convocados por senhas que ninguém chama. E ninguém se importa.

Seu João faz parte da lista dos não sobreviventes.

Os sobreviventes somos nós. Sobreviventes são os 47% dos pacientes que aguardam em torno de seis meses para marcar uma consulta ou realizar um procedimento. Sobreviventes são os outros 29% dos pacientes que esperam períodos maiores de seis meses. Sobreviventes são os 24% que conseguem atendimento em menos de um mês. Sobrevivente seria o Seu João se este atendimento “imediato” para cirurgias de emergência não tivesse vindo quatro meses depois quando ele não podia mais sobreviver.


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