A gente se conheceu na reunião de entrada no mestrado. A sala era uma espécie de anfiteatro onde se forma um semicírculo com as cadeiras. Ela estava do lado oposto ao meu e nossos olhares se cruzaram a reunião inteira. Discreta. Talvez, tímida. No princípio, não sustentava muito tempo o olhar no meu. Eu costumo sustentar meu olhar no das pessoas por mais tempo que talvez fosse apropriado, mas é algo que eu faço sem perceber. A verdade é que o olhar dela tinha de fato alguma coisa diferente. Naquele dia eu achei que era inocência.
C. é magra, bem magrinha mesmo. Tem em torno de 1m75. Os
cabelos castanhos clarinhos em cachinhos simétricos até abaixo dos ombros. Tem
sardinhas lindas. É linda. Tem uma falta de expressão peculiar dos parisienses,
mesmo sendo de outra região da França. Mas transborda alguma coisa que eu não
sabia o que era ainda. Suas roupas são sempre em tons pastéis. E ela tem um
cheirinho de neném que dá vontade mesmo de colocá-la no colo. O olhar marcado
de delineador e rímel sempre impecáveis me confundiam um pouco. Por estes tempos
eu achava que o que tinha em seu olhar era malícia.
O tempo passou. C. foi uma boa companhia. Passamos muitas
tardes assentadas no jardim da faculdade conversando por horas e horas. Um
pouco sobre Direito. Mas um pouco de poesia. Da vida. De perdas. E ganhos e
danos. E amores. E o pai morto antes dela nascer. E a mãe que estava internada
pela quinta vez. Segunda pela anorexia. Terceira pelas tentativas de suicídio.
E a irmã de pai desconhecido que com seus onze anos passa os dias sozinha em
casa enquanto a mãe está internada. E como ela se doia de não ter abandonado o
mestrado, mas que ela sentia que era o único jeito de cuidar da irmã a longo
prazo quando a mãe faltasse. E é como se ela tivesse certeza que muito em breve
faltaria. Ali, em seu olhar, era angústia.
C. reagia de uma forma fascinada ao meu jeito. Cada coisa
que eu fazia que ela gostava ela repetia e repetia e repetia para todo mundo. –
Luísa chega sorrindo toda manhã. - Luísa abraça as pessoas. - Luísa fica
mexendo nos meus cachinhos. – Luísa sempre trás um chocolate a mais da cantina
para oferecer pra gente. - Luísa faz todos os nossos trabalhos em dupla para eu
poder ir para minha cidade no fim de semana. Nestas horas seu olhar era
cumplicidade.
O tempo continuou passando. E em uma bela tarde desta
primavera, assentadas no chão à beira de um canal simpático desta cidade, em
meio a risadas, taças de vinho e muitas trocas sinceras, ela soltou como quem
não pode mais suportar: “Eu sou prostituta.”
Minha sensação foi uma nada. Um buraco. Um queimar na pele
do rosto. Este vazio estranho sobre o quanto a opção que as pessoas fazem para
si mesmas influencia na maneira como a gente olha para elas. A verdade é que é
fácil falar coisas boas de quem só tem coisas boas a mostrar. É fácil vir aqui
e fazer um post sobre Nat, o pequeno anjo de movimentos doces que caminha ao
meu lado. É fácil enumerar qualidades para cada uma das centenas de pessoas que
conheci neste um ano e meio aqui. Um
sorriso franco. Uma generosidade transbordante. Uma beleza estonteante. Uma
autenticidade natural. Um desapego enigmático. Uma competência brilhante.
Mas e quando seres humanos com versões tão admiráveis
quanto, tem outras facetas para mostrar? Facetas que todo mundo tem, mas nem
sempre a gente é ensinado a encarar, lidar, aceitar, entender sem julgar. Difícil é isolar todos os preconceitos que a
gente passa uma vida inteira aprendendo, intensificando, moldando. Difícil é
negar que somos uma construção muita pequena e medíocre de tudo que um ser
humano pode ser e do que definimos finalmente como um bom ser humano.
Porque é que as pessoas valem para nós mais quando elas são
aquilo que a gente quer e espera que elas sejam?
C. é prostituta. Vende seu corpo para pagar suas contas.
Para morar em Paris e estudar em uma universidade deste porte. Para pagar o
aluguel de 1500 euros do seu estúdio de 18 metros quadrados. Para garantir que
sua irmã pequena tenha alguém com quem contar quando a mãe deprimida, anoréxica
e suicida faltar. C. é uma mulher inteligente, doce e carinhosa. E eu tive
vergonha de mim mesma por ter deixado se quebrar um certo encanto ao ouvir
aquelas palavras, ainda que por trinta segundos.
Eu tento todo dia ser alguém que eu gostaria de conhecer. Eu
tento todo dia ser um ser humano melhor que aceita o outro pelo que ele é. Amar o
outro quando o outro é o que a gente espera é fácil. Amar pessoas que seguem o
script, que são previsíveis, que não se arriscam em direção do desconhecido é
quase automático. Eu não quero ser este tipo de gente, que ama o outro desde que ele faça o programado.
Quero amar pessoas diferentes de mim, quero amar pessoas que
se deram para vida, que saíram de lugares-comuns, que se arriscam e se dão em
nome de alguma coisa qualquer. Quero amar pessoas que apanharam da vida e não
perderam a doçura e que não usam seu caminho como desculpa para nada. Quero
amar pessoas danificadas. Quero amar quem precisa mais do meu amor do que o
contrário. Quero amar quem nunca foi olhado sem ser julgado. Quero amar quem
olha no espelho e não gosta do que vê. Quero amar quem encara a vida do jeito
que ela é.
C. não sustentou o olhar no meu ao dizer aquelas palavras.
Ou melhor, o fez por três segundos antes de abaixar os olhos e tudo que eles me
diziam eram verdade. Eu encostei no seu tornozelo, sua parte mais perto de mim
e ela me olhou outra vez. Desta vez foram meus olhos que disseram que eu ainda
estava ali e não ia a lugar nenhum. E não vou.
Isso já tem umas semanas. A gente não voltou a falar sobre o
assunto. E não sei se vai. Mas eu tenho certeza que ela sabe que pode fazer
isso quando bem entender, a cada vez que mexo nos cachinhos do cabelo dela com
o mesmo carinho de sempre. C. é uma mulher incrível. Ela é prostituta. E minha
amiga.
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