23 de fevereiro. Mais um ano.
Menos um ano.
Primeiro ato – Evitando tragédias.
Pais tem mania de achar que há como
prevenir tragédias. Tranquem bem as portas. Tomem cuidado ao chegar de madrugada
em casa. Fiquem atentos com assaltantes nos sinais de trânsito. Cuidado ao sacar grandes quantias de dinheiro. Sabe o que eu acho? Que na verdade quando nos damos conta estas tragédias, - ou acidentes, fatalidades, chamem como quiserem -, já aconteceram. Nos precavemos para ter a sensação de fazer nossa parte. Mas creio que quando percebemos não há mais o que fazer. Não há mais como evitar. Não há mais como enganar o destino e o que está ali escolhido para acontecer. Sei lá. Acho que dirigir cuidadosamente, definitivamente, não
adianta mais quando o carro no sentido contrário já invadiu a contramão e vai
bater de frente do seu em dois segundos. Definitivamente.
Até hoje quando penso naquele dia
23, costumo lembrar de algum detalhe esquecido, que havia me escapado à memória
ou que a memória bloqueou junto com os pensamentos que ela escondeu para me
proteger. Acabo lembrando da presença de alguém que eu não me recordava estar
lá ou de algum momento específico no meio daquelas centenas de momentos
fragmentados guardados na minha mente. Dia destes percebi que não conseguia me lembrar de
como foi que eu soube que ele tinha morrido. Percebi que não lembrava de quem
havia me contado, olhado nos meus olhos e dito esta frase em voz alta. Fiquei
pensando em que momento eu soube, então? E mesmo sem querer o pensamento me
devolve para aquela noite de fevereiro daquele ano.
Estranhos na casa - o primeiro aviso.
Estranhos na casa - o primeiro aviso.
Quando cheguei em casa havia
vizinhos na porta. Olhei aquelas pessoas e entrei. Havia vizinhos dentro da
minha casa, vizinhos nada íntimos dentro da minha casa. Nem sei nem dizer quem eram.
Eu diria que não sei, nem nunca soube. Estranhos não entram em nossas casas.
Não assim por acaso. A não ser... Bom, a não ser que tenha ocorrido algo muito
grave. Algo que torne alguém vulnerável a ponto de precisar de um estranho, e
alguém solidário a ponto de ajudar um estranho. Eu devia ter percebido. Quem sabe não pudesse ter feito alguma coisa. Talvez tivesse pensado em algo para enganar o destino. Sei lá. Dar meia
volta, fingir que nada aconteceu, dar um sorriso para aquelas pessoas e me
esconder debaixo da cama até aquilo se resolver. Não tive esta idéia. Entrei.
Portas abertas - o segundo aviso.
Talvez este tenha sido o primeiro
sinal, mas não importa, vamos lá. As portas da minha casa estavam abertas. Não
quero dizer destrancadas, quero dizer escancaradas. Totalmente abertas. Em
regra, portas fechadas servem para nos proteger do mal que existe nas ruas não é
isso? Proteger nossos bens materiais, nossa integridade física, nossa
intimidade. Mas isso não faz sentido em determinadas situações. Acabaram de roubar um pedaço de uma família. Havia quatro e sobraram três. O que portas fechadas seriam capazes de proteger? De que servem portas fechadas quando já levaram o que tinha de mais valor? Que mais poderia nos
importar? Não se tranca portas, carros e janelas quando algo assim já
aconteceu. Como foi que eu não percebi? Talvez ali desse tempo de ter saído despistadamente,
fingido que estava ao telefone. Vai ver teria dado tempo de voltar atrás, saído
de cena devagarzinho. Não fiz isso. Segui em frente. Como eu disse, eu entrei.
O mundo em silêncio - o terceiro aviso (e o mais evidente).
O som sumiu. Passei pela porta da
sala, a outra sala, o corredor escuro, o quarto dos meus pais. Meu pai meio de
lado, meio de costas, ao telefone. Nada de som. As pessoas me olhavam, falavam
comigo, mas eu não ouvia. Era como se aquelas bocas se mexessem aleatoriamente.
Eu fiz uma pergunta. Não me lembro qual, porque não ouvia minha própria voz. Eu
quis perguntar o que tinha acontecido. E também não me lembro do que
responderam porque a minha casa inteira não tinha som. Era minha última chance
de correr para enganar o destino, mas eu fiquei parada ali. Meu pai se virou e
foi no olhar desesperado dele que eu soube. O olhar era desesperado e quase
impaciente, como se fosse óbvio, como se o mundo inteiro já soubesse. Era como
se a minha pergunta fosse idiota. E a expressão dele nunca vai sair da minha
memória. Foi assim que eu soube. Foi o olhar dele que me disse e não sei se foi
o que as palavras disseram. Nunca vou saber porque eu não ouvi. Melhor assim.
As próximas doze horas continuaram
em silêncio e não é que as pessoas não tenham me dito nada. Eu só não me
lembro.
E é por tudo isso que eu acho que nossos
pais quando nos ensinam a evitar tragédias não estão fazendo direito. Eles não
sabem que, na verdade, na vida algumas precauções são para nos dar a falsa sensação de segurança. Grandes tragédias chegam sem avisar, quando não se pode evitar, quando já é tarde demais. Já não dá mais para fazer muita coisa. E os sinais de que elas estão para acontecer, na verdade são avisos de que elas estão acontecendo ou já aconteceram. Não foi desta vez que deu para
enganar o destino.
Segundo ato – Chamem um adulto.
Então foi assim. Foi assim que eu
soube. Acho que não me lembrava até estes dias. Nunca tive, então, que passar
por aquele momento dos filmes em que alguém te coloca assentado no sofá, te dá
um copo de água e diz serenamente que “Sinto muito, seu irmão morreu.” E lá,
nos filmes, a personagem calmamente pega um lenço e enxuga as lágrimas que
escorrem lentamente pelo seu rosto.
Não, eu não tive este momento. E
ainda bem que não. Eu não precisei de ouvir esta frase e demorei alguns meses
para dizer ela em voz alta. E também não tive que ser serena, nem contida. Nem tive a notícia no meu local de trabalho ou em algum lugar que me exigisse controle. Nem longe dos meus pais. Meu momento foi exatamente como tudo na minha vida.
Foi de verdade, foi real e pareceu mentira de tão duro. E foi ao lado das duas pessoas que me sobraram na vida que eu mais amava. E foi horrível. Mas foi como tinha que ser. Eu fui ao chão. Senti
meu coração se despedaçando em câmera lenta em um milhão de pedacinhos e fechei
os olhos. E senti todo amor que havia dentro de mim querendo explodir. E tive uma seqüencia de milhares e milhares de imagens passando na minha mente que eu queria muito interromper. Eu queria não estar ali. Eu queria voltar um segundo antes. Só para curtir minha vida por mais um segundo sem aquela sensação. É isso. Acho que o que melhor explica o desespero daquele momento é isso. A vontade de viver de novo, nem que fosse por dez segundos sem ser alguém que perdeu um irmão. Ainda é algo que eu queria re-experimentar. Mas voltando ao momento. Sabe
aqueles momentos da nossa infância em que você não sabe como agir, quando alguém se machuca, algo se quebra, o neném se engasga, seu primo pequeno quer ir ao banheiro e a a primeira idéia que vem a nossa cabeça é: chamem um adulto. Ali, enquanto eu tentava entender aquela dor, naquele mundo sem som, a
primeira idéia que me passou pela cabeça foi esta, chamem um adulto, meus
adultos, meus pais. E foi aí que eu me deparei com um dos maiores problemas da
minha vida. Eu não tinha adultos para chamar. Meus adultos estavam
estraçalhados na minha frente, em mil pedacinhos. Estavam espalhados por aquele
quarto. Talvez o vento tivesse já levado pedaços deles pela varanda, espalhado pela cidade, pelo país, quem sabe pelo mundo. E eu não tinha idéia de quanto tempo eles levariam para refazer aquela bagunça. Foi aí que entendi que eu ia ter que me virar, que eles iam precisar de
mim. Não sei se mais, mas de um jeito diferente do que eu iria precisar deles. Ali
eu virei meu próprio adulto. Ou pelo menos me dispus a tentar. Prometi, sem saber se ia poder cumprir, que eles
iam me ver só de pé. Eu tentei. Fiz o que eu pude. Depois daqueles dias, depois da volta
para casa, ao trabalho, nunca mais chorei por isso na frente deles. De ninguém, na verdade. Sei que
ela sabe, muitas vezes vê meu olhinho inchado que me entrega, meu narizinho
vermelho. Mas o quanto deu, eu tentei. Ainda tento. E sempre vou tentar. No que diz respeito a este assunto, felizmente ou não, eu nunca mais tive meus adultos e nem nunca mais quero ter. Os pedaços estão sendo encontrados, como eu imaginava, espalhados pela varanda, pela cidade, pelo mundo. E eu, definitivamente, mesmo sem um pedaço inteiro de mim sou uma pessoa completamente diferente antes e depois daquela quinta-feira. E sou melhor.
E então as cortinas se fecham. Fim do espetáculo.
Por hoje que o vento espalhe uma
boa saudade. Que o próximo dia 23 demore a chegar e venha devagarzinho e suave.
Que todos os dias 23 continuem sendo dias lindos, de céu aberto. Que as lembranças que reapareçam sejam apenas as menos doídas. Que continue esquecido por mim aquilo que não precisa de ser lembrado sobre aqueles dias. Que este dia tenha sempre este silêncio diferente. Que a vida siga leve e boa. Ter um anjo particular é para poucos e eu tenho o melhor. Sigo, então, cheia da melhor saudade da melhor vida vivida a quatro pelos longos e melhores anos que já existiram.
P.s.: Na minha cabeça o terceiro ato estava pronto, mas estes posts são dolorosos de escrever. Estes minutos aqui são meus momentos de maior contato com alguns instantes da minha vida. Principalmente com os mais difíceis de absorver e entender. Ele vai virar um outro post qualquer. Em uma tarde bonita.
Em algum lugar, em algum momento, de alguma forma... alguém precisava ler ou ouvir essas suas palavras. Ontem foi meu aniversário e sempre me lembro daquele abraço que ganhei do seu irmão. Isso ficará gravado em mim pra sempre assim como esse seu texto lindo.
ResponderExcluirBjs na família
Faço minhas as suas palavras Lulu.
ResponderExcluirMesmo sentimento, mesmos atos... mesmo espetáculo...
..."Que todos os dias 23 e 14 continuem sendo dias lindos, de céu aberto"...
"Sigo, então, cheia da melhor saudade da melhor vida vivida a quatro pelos longos e melhores anos que já existiram." !!!!!!
Obrigada pelas suas palavras minha princesa linda! Amo vc!