quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Vida sem prorrogação.

Isso mal pode ser chamado de uma despedida de verdade. Eles apenas repetiram pela última vez um ritual que já haviam feito centenas de vezes no tempo em que tiveram suas vidas divididas.

Ela se assentou na bancada da cozinha. Pegou seus anéis que colocava ali um segundo depois de entrar no apartamento. Balançou os pés com suas meinhas coloridas que ele gostava tanto, esperando que ele pegasse suas botas. Depois ele ofereceu água. Ela quis. Gelada. Como todas as outras vezes. Ela sempre se dizia que aquela água era a melhor que ela tinha bebido naquele país e ela achava mesmo que fosse.

90% desta história foi vivida naquele apartamento. Eles se conheceram ali mesmo. A primeira vez que se viram e agora a última. Ela se lembra de que no segundo em que o olhou nos olhos pela primeira vez teve certeza que ainda iria amar aquele cara. Ela não sabia que tipo de amor ia ser, nem quanto tempo ia durar. E nem se importava. Mas soube que ele ia ser uma das suas pessoas. Ela só não soube que ia ser tanto. Só não soube que ele ia passar por cima de tantas coisas para estar do seu lado, nem que ele fosse efetivamente pedi-la só para ele. Só não soube que eles iam inventar um modo particular de fazer esta coisa toda e ainda assim poderia funcionar.

Ela deixou para trás algumas coisas na porta do armário que mereceu. Ele que as tire de lá quando sentir que deve, quando isso tudo não os pertencer mais. Então pode ser hoje no fim da tarde ou amanhã pela manhã, pode até ser agora ou pode ser quando ele achar o último dos 28 bilhetinhos que ela deixou espalhados pela casa em cada parte disso que lhe pertenceu até aqui.

Eles montaram o quarto novo juntos e acho que isso vai fazer ele lembrar dela. Principalmente o enfeite que ele não queria na parede e a almofada que não combina com nada. E acho que ele vai ter alguma raiva dela por isso em algum momento. E acho que isso pode ser bom. Ela foi e prometeu facilitar sua partida. Prometeu não dizer nunca se ela ainda o amar depois de hoje e nunca o chamar se sentir saudades. Uma vez ele disse e pareceu verdade que se ela não o amasse de volta ia ser tudo mais fácil. Acho que seria mesmo.

Então, enquanto ele colocou as botinhas nela, ela o beijou no alto da cabeça. Ele sorriu para ela ajoelhado e brincou de tirar uma aliança do bolso como fazia todas as vezes. Ela fez uma careta, o chamou de idiota e gritou um "J’accepteeeee" desafinado. Tudo sempre igual. Mesmo que depois de uma certa ocasião esta brincadeira tenha ficado mais desconfortável do que engraçada. Nesta hora ela se apaixonou pelo sorriso dele 32 vezes, uma para cada milésimo de segundo que ele gastou até levantar e beijar aquele cantinho mágico entre o nariz e a bochecha dela (o preferido dele). Ela pulou do banquinho, pegou sua bolsa em cima da mesa.

Eles foram até o corredor, cada um falou um número antes de apertar o botão do elevador tentando adivinhar de que andar ele vinha. Ela acertou como sempre e se fosse possível dava para dizer que ele fazia de propósito para ver ela comemorar dançando e rir alto. Ele não é de rir nem de sorrir muito. Foi o primeiro alerta feito por sua mãe quando elas se conheceram, como se fosse possível alguém não perceber isso. Mas o sorriso dele sempre foi fácil para ela, sempre. Não chamaria de barulhentas gargalhadas, mas era um sorriso largo, meio mole, branquinho e verdadeiro, muito verdadeiro.

Ai o elevador chegou, ela deitou no peito dele três segundos e o beijou no espacinho entre o peito e o pescoço (o preferido dela!). Ele estava encostado no vão da porta e não se moveu. Ela sorriu, entrou no elevador e a porta fechou. Foi tudo igual, sempre. Com a única e ensurdecedora diferença de que era esta a última e eles sabiam. Talvez eles até se vejam de novo, talvez se cruzem por acaso ou não. Mas esta história, como foi vivida até ali, deixou de os pertencer no segundo em que a porta do elevador fechou entre eles.

Começa aqui uma página nova de suas histórias. Mas não é mais uma história deles. É a dele. E é a dela. Quando a porta do elevador fechou entre eles, as pernas dela bambearam. Ela tinha se prometido que não ia chorar.Ele desviou o olhar do dela um segundo antes e pareceu medo. Ela ficou com medo e também abaixou o dela. Ela não sabe se ele teve tempo de remontar o olhar. Ela não teve. A última coisa que viu foram os pés dele.

Ela queria que ele soubesse que quando chegou na rua tudo rodou. Ela achou que ia vomitar. Ela se assentou na beira do passeio e chorou. E quis voltar e dizer que queria ficar mais um pouco. Mas foi embora. Eles procuraram tantas e tantas manhãs uma música para chamar de deles e neste momento ela só agradeceu por não tê-la baixado no seu celular. Ainda que ela tenha desconfiado que qualquer nota musical que tocou desde que ela colocou os pés nesta cidade vai lembrar os dois. E ainda que ela soubesse que de toda forma quando ela estivesse longe ela ia se lembrar de como ele a beijava, do jeitinho que o Ed cantou.

Ela viveu sim alguns outros amores e paixões nesta cidade que não carrega o título de cidade mais romântica por acaso. Mas faltou ele ter absoluta certeza que ele foi o amor mais magicamente estranho que ela já teve. E ela queria pedir desculpas pelas vezes que o magoou e sabe que fez, por ter dito não para única coisa que ele pediu e por não ser o tipo de pessoa que deixa o amor furar fila de outros tantos planos para a vida. Ela disse tantas vezes: o amor não é confiável, ele vira pó, ele sempre vira pó. Ela queria que ele acreditasse nela. Que isso também ia acontecer com eles. E ela também queria acreditar.

E ela queria que ele soubesse que este amor teve o tamanho da Torre Eiffel. E queria que ele a tivesse visto chorar para ter certeza, porque ele dizia que não era normal que ela não chorasse nunca, exceto naqueles episódios de Grey’s Anatomy. Na última vez que ele viajou, pouco mais de um mês atrás, quando foi pegar a correspondência e molhar as plantas, ela se assentou ali no chão da sala e passaram mais coisas na sua cabeça do que se poderia imaginar. Ela ficou ali umas meia hora ou mais, não tem certeza. E a única coisa que consegue lembrar agora é do cheiro daquela casa. Não é o dela, nem o dele, mas vai ser o cheiro que vai sempre a fazer reviver as centenas de momentos bons ou não que passaram no apartamento que era dele e ele sempre chamou de “nosso”, talvez como um jeito de a convencer a ficar mais um pouco.

Ela queria que ele soubesse isso tudo, mas ele não vai saber. Ela transborda quando não cabe nela, mas vai fazer isso longe dos olhos dele. Ela achou que este pode ser o jeito mais fácil. Com o sabor menos amargo de uma partida silenciosa, que não deixa portas abertas, espaço para interpretações ou esperas intermináveis por algo que não está destinado a acontecer. A única coisa que eles precisavam saber é que ela estava indo e bastou.


Certamente uma das grandes lembranças que ela leva desta vida que fica para trás, ele valeu o registro. Ela o amou de verdade até às 12h37 daquela sexta-feira, 25 de setembro de 2015. Tudo no tempo regulamentar, sem direito à prorrogação.

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